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02 maio 2011

UMA EXPERIENCIA ARTISTICA


A arte tem sido, ao longo dos tempos, um campo privilegiado de articulação, conexão e síntese. Um poderoso instrumento de mutação cultural e social, que invade a vida e transforma a realidade, na medida em que expande pensamentos, que, por sua vez, criam novas formas de existência.

O cinema, por exemplo, ao despertar no espectador um processo afetivo de participação, desencadeia uma série de emoções e sensações que lhe dão um caráter de credibilidade que outras formas de arte, muitas vezes, não suscitam de imediato. O homem comum, ao se ver iluminado em uma experiência projetiva, se sente excepcional em sua insignificância e mergulha num universo de sonho e magia, onde uma linguagem diferente o enuncia como um “outro”. Vista sob este viés, a arte é um testemunho do inconsciente e o domínio fílmico,em particular, é aquele que, ao criar uma impressão de realidade, automaticamente descentra o sujeito das imagens fixas que tem de si mesmo, viabilizando a construção de outras. Ele se desdobra, se duplica. Cada um vê o seu filme, a partir de vivências particulares,dado o caráter totalmente subjetivo da experiência. Isso nos leva a pensar se essa não seria, também, uma das principais características do processo analítico. Vemo-nos como um e descobrimos vários.

A discussão sobre os atravessamentos possíveis entre o sonho e o cinema, acima de tudo, possui o mérito de ressaltar aspectos importantes no tocante à discussão sobre o estatuto do imaginário como potência de criação, dentre outros temas que concernem à teoria cinematográfica/prática psicanalítica - e não apenas como engodo resultante da captura produzida pela indústria cinematográfica.

Como exemplo, podemos citar um filme em cartaz, “O Cisne Negro", de Darren Aronofsky, que suscitou resenhas e reportagens. Várias delas resvalavam na Psicanálise, ao ser mencionada a "busca de perfeição e as experiências traumáticas" que a personagem de Natalie Portman interpreta.Exatamente por isso, gostaria de tentar expandir o trecho que diz que para "os artistas que batalham contra os limites do próprio corpo numa rotina espartana, é fundamental se manter no eixo."

Que eixo? Existe eixo nos excessos, nos transbordamentos? Ao abordar tais temas -a anorexia e a bulimia, a esquizofrenia e a paranóia, além da questão crucial do real e seu duplo- o filme voa bem mais alto que os saltos e pliés do "Cisne Negro" e adentra o terreno da Psicanálise. Dizer que é um filme sobre balé, como fizeram alguns críticos, é fechar os olhos, os horizontes , o pensamento.

Por uma via oblíqua, Aronofsky expressa à necessidade asfixiante de duplicar o real por demais inquietante que aterroriza Nina, a personagem e também, a nós, passageiros da velocidade e das pressões contemporâneas. E como isso aparece? Através das alucinações, fantasias e sonhos projetados na "outra", que criam uma realidade aparente, uma mistura entre real e o ficcional concebida no estofo de um "eu menor",como diz Clèment Rosset, atormentado por acontecimentos do mundo que são meras réplicas dos acontecimentos internos reais, de intolerável vigor. Eles reduplicam, anormalmente, a percepção do atual, por conta de uma precariedade existencial, de "uma insustentável leveza dos ser" diante do carater indigesto das exigências que a vida lhe faz. Uma mãe que dela quer fazer um duplo que dê conta de suas frustrações, um coreógrafo-tirano que deseja que ela atravesse a fronteira que liga sexualidade e horror, por conta de suas questões narcísicas. O real não dá conta de si mesmo e das exigências internas de satisfazer as demandas externas. A doença se manifesta e atinge um umbral crítico.É preciso um outro, uma projeção mimética do mesmo, um estranho-familiar que Freud chamava de "Unheimlich", para fazer a trajetória do cisne "branco" para o "negro". É necessário um jogo de projeções e identificações que tragam sustentação na criação de um outro lugar.A entrada em cena do duplo fantasmático, embora cruel, é necessária, porque sem ele o ser de Nina não é nada.

A narrativa do filme levanta, como um vento forte, o véu que encobre, em meio à suscetibilidade, a insuperável divisão estrutural de Nina, que leva à passagem ao ato. Entre aquilo que é da ordem das pulsões de autoconservação - a vida e o amor - e o que pertence à ordem dos rastros do silêncio - a pulsão de morte - o cineasta faz acontecer o terrível, o extraordinário, o sublime.

Lembrando que o advento do cinema é contemporâneo ao surgimento da "Interpretação dos sonhos", como fato inaugural do saber psicanalítico, lembramo-nos que tal questão não escapou à observação de Bernardo Bertolucci que afirmou, por ocasião do seu filme "La Luna", que o cinema de Freud eram os sonhos dos seus pacientes, pouco importando, no caso, se Freud gostava ou não de cinema.

O que sabemos é que não dá para ver certos filmes, e não pensarmos em sua eterna genialidade, que nos leva, sempre, à possibilidade de expansão psíquica.

Angela Villela e Luiz Felipe de Faria
Psicanalistas

02 setembro 2010

DA DÍVIDA COMO CULPA AO CUIDADO COM O OUTRO: AS PERSPECTIVAS DE NIETZSCHE E DE WINNICOTT

Jurandir Freire Costa





Nietzsche[1] diz, em Genealogia da moral – Uma polêmica, que a “consciência de culpa” ou “má consciência” se originou do “conceito muito material de dívida”[2]. Sugiro que a idéia é inconsistente. Nietzsche, em meu entender, não consegue mostrar, de forma convincente, a relação causal ou de sentido entre “dívida material” e “sentimento ou consciência de culpa”.

Penso, em contrapartida, que ele consegue oferecer uma descrição da gênese da culpa mais convincente em A gaia ciência[3]. Pretendo desenvolver o argumento, revendo, de início, o hipotético elo lógico existente entre dívida material e culpa.

Retomo o trecho da Genealogia... no qual a questão é mencionada: “Esses genealogistas da moral teriam sequer sonhado, por exemplo, que o grande conceito moral de ‘culpa’ teve origem no conceito muito material de ‘dívida’? Ou que o castigo, sendo reparação, desenvolveu-se completamente à margem de qualquer suposição acerca da liberdade ou não-liberdade da vontade? – e isto a ponto de se requerer primeiramente um alto grau de humanização, para que o animal ‘homem’ comece a fazer aquelas distinções bem mais elementares, como ‘intencional’, ‘negligente’, ‘casual’, ‘responsável’ e seus opostos, e a levá-las em conta na atribuição do castigo. O pensamento agora tão óbvio, aparentemente tão natural e inevitável, que teve de servir de explicação para como surgiu na terra o sentimento de justiça, segundo o qual ‘o criminoso merece castigo porque podia ter agido de outro modo’, é na verdade uma forma bastante tardia e mesmo refinada do julgamento e do raciocínio humanos; quem a desloca para o início, engana-se grosseiramente quanto à psicologia da humanidade antiga”. [4]

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10 agosto 2010

PSICANÁLISE DA CRIMINALIDADE BRASILEIRA: RICOS E POBRES

FOLHETIM Suplemento do Jornal "Folha de São Paulo", 07 de outubro de 1984)


Hélio Pellegrino

(Observação: este texto é de 1984. Por isto está defasado em relação a alguns fatos. Tendo em vista que se pretende usá-lo para as aulas de filosofia optou-se por enxugá-lo.)

O velho presidente Washington Luiz, derrubado pela Revolução de 30, costumava dizer, do alto de sua prosápia conservadora, que a questão social é um caso de política.

Da década de 20 até hoje, passaram-se cerca de 60 anos. Neste longo prazo, um número crescente de brasileiros adquiriu ferramentas intelectuais e críticas para desmoralizar tão insólito, retrógrado - e tosco - aforismo.

Ocorre, não obstante, que há brasileiros que, ainda hoje, acreditam nele. E, o que é mais grave: a polícia de nossos dias parece crer que a questão social é um caso de polícia. Basta ver a violência policial contra o direito de greve, considerado, não como prerrogativa democrática da classe trabalhadora, mas como manifestação de delinqüência, a ser reprimida a ferro e fogo.

A definição do falecido presidente me vem à memória na medida que começo a pensar o problema da criminalidade e sua articulação com o aparelho repressivo do Estado. A criminalidade, fora de qualquer dúvida, é uma questão social, ou melhor: faz parte íntima e constitutiva da questão social. Dizer-se que ela é apenas um caso de polícia é tão obtuso, estúpido e retrógrado quanto afirmar que a questão social é um caso de polícia.

A bem da clareza, é necessário distinguir entre os conceitos de crime e criminalidade. O crime está para a criminalidade assim como a doença isolada está para a endemia - ou a epidemia. Por melhores - e mais avançados - que sejam os recursos da medicina, haverá sempre doenças e doentes, embora isto não signifique a sobrevivência, para sempre, das endemias e epidemias.

Expulsos do paraíso

O crime é uma possibilidade constitutiva e inarredável do ser da existência humana. Sempre haverá crime no mundo, porque o homem é, em seu centro, indeterminação e liberdade. Por termos dado o salto da natureza para a cultura, fomos expulsos do Paraíso, perdemos o mapa da mina, rompemos com a Lei Cósmica e com a formidável relojoaria que ela preside - e põe em marcha.

O animal, que nasce feito e perfeito, e ainda está no Paraíso, tem a seu serviço a memória imemorial dos instintos, que o costuram ao Cosmo e o transformam num servidor infalível da Lei. Nós, humanos, por termos nascido livres e indeterminados, conquistamos o amargo privilégio da errância, do erro, e de sua crispação exacerbada e desesperada: o crime. O animal, por nascer feito, não procura - acha -, ao passo que o ser humano tem que buscar-se, para achar-se e inventar-se. E porque temos que inventar-nos, na medida que somos livres, é que corremos o risco do extravio, da transgressão - e do crime.

Não creio que a organização social, por mais perfeita e fraterna que venha a tornar-se, por mais que chegue a encarnar as utopias mais altas, traga consigo a possibilidade de erradicar totalmente o crime do coração do homem. Já a criminalidade constitui outro problema. Ela é expressão e conseqüência de uma patologia social, isto é, constitui sintoma desta patologia. E, através de sua intensidade, nos será permitido, com sensível e infalível certeza, aferirmos do grau de perturbação, dilaceração e desordem da vida social.

Um sintoma é sempre conseqüência - e não causa - de doença, embora possa vir a tornar-se causa de novos efeitos, ou de novos sintomas. Nesta medida, o combate ao sintoma não garante, de forma alguma, a remoção ou erradicação das causas da doença. Muito ao contrário: o encobrimento ou o abafamento de um sintoma pode gerar a perigosa ilusão de que a moléstia tenha sido erradicada. Ou ainda; a luta exclusiva contra o sintoma pode criar a enganosa - e também perigosa - convicção de que se está a combater a doença, quando, em verdade, estamos a favorecê-la e a permitir o seu agravamento e expansão.

A propósito, lembro-me de uma história exemplar, ocorrida na cidade mineira de Nova Lima, por volta dos anos 30. Em Nova Lima, existe uma importante mina de ouro - a mina de Morro Velho - que, àquela época, vivia o seu fastígio, e era propriedade de uma companhia inglesa. Os operários, nas entranhas da terra, perfuravam a rocha com suas brocas e picaretas e, desta forma, respiravam nas galerias fundas a poeira de pedra que o trabalho levantava.

Sem nenhuma proteção, ao fim de algum tempo, os mineiros, na sua quase totalidade, contraíam a silicose, causada pelo depósito do pó de pedra em seus pulmões. A silicose, além de encurtar a vida e a capacidade de trabalho, provoca também uma tosse crônica, oca e ressoante, capaz de denunciar - à distância - a moléstia que lhe dá origem.

Nas noites de Nova Lima, a cidade, quando buscava repouso, era sacudida e inquietada por uma trovoada surda e cava que, nascendo dos casebres operários, rolava em ondas recorrentes até às fraldas das montanhas em torno. Era a grande tosse dos pobres, sintoma e denúncia eloqüente da silicose que os roía. Os ingleses, perturbados em seu sono e em sua boa consciência, ao invés de adotarem medidas hábeis para que a silicose cessasse, resolveram enfrentar o problema pelo exclusivo ataque ao sintoma. Montaram em Nova Lima uma fábrica de xarope contra a tosse que, ao mesmo tempo, produzia para consumo dos colonizadores matéria-prima para refrigerantes não encontrados em nosso país.

A fábrica andou de vento em popa, produzindo tonéis e tonéis de xarope, vendido a preço módico, mas não tão modesto que impedisse uma pequena margem de lucro, por unidade vendida. Os ingleses, dessa forma, uniram o útil ao agradável. O abrandamento da grande trovoada brônquica foi transformada em fonte de renda, ao mesmo tempo que devolvia, aos súditos de sua Majestade Britânica, a boa consciência e a possibilidade de um sono reparador. A silicose, intocada, trabalhava em silêncio.

Esse modelo tragicômico pode ser aplicado, com estrita literalidade, a qualquer pretensão de combater a criminalidade desatendida de sua condição de sintoma e, portanto, desenraizada das causas sociais que a produzem e alimentam. Criminalidade é efeito, é forma perversa de protesto, gerada por uma patologia social que a antecede e que é, também ela, perversa. A criminalidade está para a patologia social assim como a tosse convulsiva está para a silicose.

Cegueira perigosa

É claro que a criminalidade, enquanto sintoma, tem que ser adequadamente atendida por medidas policiais cabíveis, tanto quanto há que minorar, através de remédio próprio, a tosse do silicótico. Mas que não se fique nisto, já que o combate ao efeito não remove - nem resolve - a causa que o produz. Ao contrário, a luta pura e simples contra o efeito pode tornar-se danosa e perversa, uma vez que, destruindo a sua função alertadora e denunciadora, provoca uma cegueira perigosa, a serviço do mal. A erradicação da criminalidade, através de medidas puramente sintomáticas, é um procedimento ideológico destinado a encobrir a responsabilidade social na produção dessa mesma criminalidade.

É óbvia, do ponto-de-vista intuitivo, a correlação entre criminalidade e crise social. Em nosso País, a onda de crimes, nas grandes cidades, é solarmente proporcional ao aprofundamento da crise. Este paralelo pode ser matematicamente desenhado, através de curvas estatísticas que lhe definam o perfil.

Entretanto, cumpre considerar que nem toda crise social gera criminalidade. Veja-se, a propósito, o exemplo da guerra do Vietnã, ainda viva na memória de todos. O Vietnã do Norte e o Vietcong suportaram, da parte dos invasores americanos, uma pressão militar arrasadora, cujos efeitos na vida social do país foram, igualmente, arrazadores. Não obstante, o Vietnã do Norte manteve altíssimo os eu moral guerreiro e patriótico, a ponto de levar à derrota o invasor imperialista. Não houve lá nem criminalidade, nem desordem, nem desespero. O povo, unido pela causa da libertação nacional, soube preservar, contra todos os sofrimentos, a solidariedade, a fraternidade, o espírito de luta - e a certeza na vitória.

Já no Vietnã do Sul, dirigido por um Governo títere e mercenário, as coisas se passaram ao revés. O povo, maciçamente, aderiu à guerra de guerrilha, contra os exércitos invasores. Restaram, a favor destes, os corruptos, os traidores, os especuladores, os proxenetas, os rufiões e vendilhões de todo tipo. A criminalidade atingiu níveis espantosos: o tráfico de drogas, o mercado negro, a prostituição, o assalto, o estupro, o homicídio passaram a cancerizar a vida social até à derrota militar - e ao desastre final.

A criminalidade, portanto, cresce a partir de um certo tipo de crise social, ou melhor: ela é expressão e conseqüência de uma patologia social suficientemente grave para gerá-la. Uma crise social se torna apta a fomentar a criminalidade quando chega a lesar, por apodrecimento grave, os valores sociais capazes de promover uma identificação agregadora entre os membros de uma comunidade.

A vida social, para ser respeitável e suportável, precisa estar irrigada e vivificada por princípios mínimos de justiça, de equidade, de legitimidade do poder político, de respeito pelo trabalho e pela pessoa humana. Esse elenco de valores, acolhido por todos e cada um, irá constituir o Ideal de Eu de um cultura determinada. O Ideal de eu, referência identificatória comum aos membros de um processo civilizatório, constituirá o cimento capaz de promover a integração - e a coesão - do tecido social.

Quando falta esse cimento; quando apodrece o elenco de valores que constitui o Ideal do Eu de uma sociedade; quando a injustiça impera e a iniquidade governa; quando a corrupção pulula e a impunidade se instala; quando a miséria de milhões se defronta com a aviltante ostentação de pouquíssimos; quando ocorre tudo isto que - no presente momento - define e estigmatiza a sociedade brasileira, então a criminalidade desfralda a sua bandeira perversa, e se torna a denúncia de uma estrutura social também perversa.

A articulação entre criminalidade e o tipo de crise social que acabamos de descrever, é passível de elucidação científica rigorosa, a partir do pensamento psicanalítico. Para tanto, é necessário fixar alguns dos conceitos essenciais à ciência inventada por Freud.

Comecemos com o Complexo de Édipo, talvez a mais importante - e fecunda - das descobertas freudianas.

O Complexo de Édipo

O Complexo de Édipo é, para o criador da psicanálise, a principal articulação estruturante do psiquismo humano.

Ao mesmo tempo, é fonte e origem das relações elementares de parentesco e das instituições sociais, de caráter leigo ou religioso. É na constelação dos conflitos edípicos que a criança se defronta, de maneira crucial e inaugural, com as figuras da Lei, da interdição, da transgressão, da culpa e do temor ao castigo, advindo do poder de polícia e do papel de juiz atribuídos ao Pai.

Vamos relatar, de um ponto de vista descritivo, o Complexo de Édipo, segundo o pensamento de Freud. A exposição que faremos se refere exclusivamente ao Édipo masculino, na sua forma direta, ou positiva. Este caminho implica, sem dúvida, uma simplificação. Através dela, entretanto, ganharemos uma simplicidade e uma clareza elucidativa capazes de favorecer a eficácia da tese que iremos expor.

Par Freud, entre os três e os cinco anos, o menino se encontra na fase genital infantil - ou fálica - de seu desenvolvimento psicossexual. Nessa idade, tendo já o pênis como seu principal órgão de prazer, apaixona-se pela mãe, desejando-a sexualmente, ao mesmo tempo que odeia o pai e imagina a sua destruição, já que este é, segundos sua fantasia, o rival que lhe barra o caminho do incesto.

A vicissitude edípica, cheia de som e fúria, é extraordinariamente penosa, pelas culpas que suscita e pelos temores que desperta. A relação do menino com o pai, nessa época, é marcada por forte ambivalência. O menino odeia o pai e quer matá-lo, mas, ao mesmo tempo, o ama, admira e respeita. Concomitantemente, teme, com todo o seu corpo, a retaliação paterna, por ele imaginada.

O Édipo, representando a gramática pela qual o desejo se estrutura, de modo a integrar-se no circuito de intercâmbio social, significa também uma etapa decisiva no processo de separação entre a criança e a mãe. Esta separação é absolutamente indispensável, caso contrário a criança jamais chegará a superar sua dependência infantil. A construção desse afastamento se inicia com o corte do cordão umbilical. Depois, chega a época traumática do desmame. A seguir, são impostas as regras de controle esfincteriano e de higiene, ligadas à excreção. Por fim, vem o Édipo e a interdição do incesto. A partir daí, o menino perde profundamente a mãe, enquanto objeto sexual, e se credencia, ao grave preço desta perda, a ganhar os caminhos do mundo e o amor futuro das outras mulheres.

O medo da castração

De que maneira, segundo Freud, se encaminha, resolutivamente, a paixão edípico-incestuosa do menino pela mãe? Ele tem que, sem apelo, abrir mão de seu amor interditado e, por todos os motivos, votado ao fracasso. E o faz, originalmente, movido pelo temor. Em sua fantasia inconsciente, o menino passa a imaginar que o pai possa vir a castrá-lo, como punição pelos seus desejos incestuosos e parricidas. Ao complexo de Édipo se articula, agora, o complexo de castração, decisivo para o encaminhamento resolutivo do conflito edípico.

O menino, na fase genital infantil - ou fálica - de sua evolução libidinosa, confere ao pênis um extraordinário valor narcísico, uma vez que este já se constitui como órgão capaz de proporcionar-lhe o maior prazer. A ameaça de perdê-lo, joga-o no temor - e no tremor. É pelo medo da castração que o menino começa a desistir de sua paixão incestuosa, iniciando o processo pelo qual acabará por identificar-se com a Lei do Pai, ou Lei da Cultura. Esta identificação constitui um passo crucial na evolução psíquica e social da criança. Em torno dela se constelarão as regras, ditames, comportamentos e valores que integram os ideários e os ideais de uma cultura determinada.

A resolução do Édipo é condição indispensável para a boa inserção da criança no circuito de intercâmbio social.

Por que caminhos, segundo Freud, constrói o menino, em sua mente, o temor de que o pai possa vir a castrá-lo? À época do conflito edípico, o menino, em plena fase fálica, descobre a diferença entre os sexos. Verifica, com assombro, que a menina - e a mulher - não possuem o precioso e valorizado órgão. Elabora, então, a teoria de que a menina é um menino castrado, e o é por punição do pai. Passa a temer - com grande angústia - que a mesma sorte lhe esteja reservada. E, para fugir dela, começa a abrir mão de sua paixão incestuosa.

O temor é, pois, a mola mestra originária que induz o menino a aceitar a Lei do Pai. Aqui, como na teologia cristã, o temor é o fundamento de toda virtude. Mas, se o temor da castração é necessário para a resolução do Édipo, não o é, contudo, em grau suficiente. A Lei do Pai, inscrita na espessura do desejo por obra exclusiva do temor, deixa de ser a Lei do Pai e passa a ser a lei do cão.

Nenhuma lei funda sua legitimidade a partir do temor puro e simples. Ao temor de Deus, na teologia, segue-se o amor a Deus, que define a essência da relação entre o homem e a divindade.

No caso da Lei da Cultura, ocorre a mesma coisa. O temor arranca o menino de sua paixão incestuosa, mas é o amor do pai que irá curar essa ferida, de modo a torná-la metabolizável - e ultrapassável. O menino, no Édipo, esbarra com a potência de interdição da lei e, nesta medida, tem que renunciar á onipotência do seu desejo, o que corresponde a uma terrível injúria narcísica. Ele tem que abandonar o princípio do prazer e aceitar o princípio da realidade, pelo qual vai inserir-se no circuito de intercâmbio social.

Essa grave renúncia, entretanto, não se faz em pura perda. A Lei do Pai, fora de dúvida, exige do menino um sacrifício portentoso. Mas, uma vez integrada, abre para o seu desenvolvimento perspectivas cruciais e fundadoras. A Lei do Pai implica uma ação de troca e de intercâmbio amoroso. Ela pede - mas doa. Constringe, mas liberta. Impõe ao desejo uma gramática mas cria a possibilidade do livre discurso amoroso.

Deveres e direitos

A lei da Cultura é, em sua essência, um pacto, um toma-lá, dá-cá, um acordo pelo qual a criança é introduzida como aspirante a sócia da sociedade humana. Ela adquire, pelo Édipo, um lugar na estrutura de parentesco, ganha nome e sobrenome, tem acesso à ordem do simbólico e, portanto, à linguagem, liberta-se da excessiva dependência à mãe e se torna capaz de iniciar sua aventura humana, como inventora dos caminhos do seu desejo. O Édipo é um crivo crucial. Através de sua estrutura se constitui o modelo básico de intercâmbio entre o ser humano e a sociedade, pela definição de deveres e direitos.

A resolução do Édipo hominiza - e humaniza. A renúncia ao incesto implica, também, a renúncia aos impulsos criminais e anti-sociais. Aceito as regras do jogo da sociedade em que vivo. E passo a jogá-lo.

Transposto o complexo de Édipo, a criança entra na fase de latência sexual, e novas tarefas - e exigências - a esperam. Por ditame da sociedade, através da família, começa a adquirir, por meio do aprendizado, uma competência que lhe permitirá, no futuro, por mediação do trabalho, tornar-se sócia plena da sociedade humana. A aquisição dessa competência é tarefa longa e árdua. Ela exige da criança sacrifícios e renúncias importantes. Aprender a trabalhar não significa apenas a aquisição de uma técnica. Este aprendizado define toda uma postura existencial, um ato de esperança e de confiança no futuro.

A capacidade de trabalhar, em qualquer nível, é uma exigência feita pela sociedade a todos os seus membros. Para atendê-la, a criança, mais uma vez, tem que renunciar ao princípio do prazer, acatando - e praticando - o princípio da realidade. Repete-se aqui, ao nível das tarefas, obrigações e deveres sociais, a mesma exigência feita à criança com relação aos seus impulsos edípicos. Para renunciar ao incesto e ao parricídio, a criança teve que abrir mão da onipotência de seu desejo. Este foi o batismo de fogo que a fez ingressar como aspirante a sócia da sociedade humana.

Através do aprendizado escolar, profissional e humano, a criança também tem que abrir mão dessa onipotência. Os dois processos - o Édipo e as subsequentes tarefas de socialização - representam situações estruturalmente análogas. Se o Édipo é o batismo, o trabalho é a crisma pela qual o ser humano se torna sócio da sociedade humana.

Em ambas as situações, as renúncias exigidas são muito graves. Trabalhar é desistir da onipotência do desejo. É adequar-se ao princípio da realidade. É aceitar os princípios de autoridade, hierarquia e disciplina. É poder conviver, cooperativamente, com os outros. É, afinal, cumprir uma exigência imperativa da sociedade, cujo atendimento deve gerar, por justiça, direitos inalienáveis.

A partir do trabalho, exigido pela sociedade, estabelece-se um pacto social que, à semelhança do pacto edípico, tem que ter mão dupla. A competência para o trabalho exige um longo e doloroso aprendizado. Em troca deste sacrifício, quem trabalha adquire os agrado direito de receber, como paga, o mínimo necessário à preservação de sua subsistência e dignidade - e à de sua família. O pacto social se legitima - e se cumpre - através desse intercâmbio. Sem ele, o pacto se torna viciado e se corrompe, com graves conseqüências.

Suponhamos que pacto social não seja cumprido, por parte da sociedade. O trabalhador, de qualquer categoria, não é recompensado pelo longo esforço que fez. Apesar de sua competência, tem as mãos vazias. Não tem emprego ou, se o tem, ganha um salário que não lhe permite viver com dignidade. O aviltamento do seu trabalho é a mais grave ofensa social que possa ser feita a um homem. Ela o atinge na essência mesma de sua condição de pessoa. Ela ofende o seu senso de equidade e de justiça. Ela o frauda na sua esperança - e na sua fé no mundo. Ela semeia em seu coração a descrença e a revolta.

O desrespeito da sociedade pelo trabalho - e pelos direitos elementares do trabalhador - pode levá-lo a uma ruptura com o pacto social. Desprezado, aviltado, degradado, o trabalhador se nega ao pacto. Rompe com ele, questiona-lhe a estrutura, repudia a validade e a justiça dos sacrifícios que, em seu nome, lhe foram exigidos. O rompimento do pacto social pelo trabalhador, em resposta a uma prévia ruptura da sociedade, pode vir a ter conseqüências catastróficas. Não nos esqueçamos que o pacto social - e o pacto edípico - se articulam íntima e indissoluvelmente.

O processo civilizatório, em seu conjunto, obedece a uma mesma linha estratégica. Ela exige progressivas e dolorosas renúncias, mas, em troca, fica obrigado, para legitimar-se a criar direitos e vantagens correspondentes.

Suponhamos que haja um rompimento grave da relação de mutualidade que sustenta - e legitima - o pacto social. Essa ruptura, fraudadora e conspurcadora da dignidade humana, pode levar ao desespero, à cólera, à revolta. O trabalhador tenderá a repelir o pacto social e os sacrifícios que exige. Tal repulsa, por outro lado, em virtude da solidariedade que existe entre o pacto social e o pacto edípico, pode vir, por retração, a provocar uma ruptura do pacto edípico, ao nível da realidade intrapsíquica. Esse efeito se tornará tanto mais provável quanto mais existir, numa sociedade determinada, além do desrespeito ao trabalho, um clima de apodrecimento dos valores que poderiam cimentar a coesão social.

O rompimento com a Lei do Pai - ou Lei da Cultura -, através da rejeição do pacto edípico, produz efeitos catastróficos na mente e na conduta do indivíduo, e corresponde a um ato de parricídio. O Édipo é uma gramática pela qual o desejo e a agressão se tornam metabolizáveis e entram no circuito de intercâmbio social. O Édipo implica, necessariamente, renúncia e recalque de pulsões anti-sociais e criminais, não utilizáveis pelo processo civilizatório.

Com a ruptura do pacto edípico, ocorre o retorno do recalcado, para usarmos a expressão freudiana. A barreira do recalque, rompida, liberta o enxurro dos impulsos antes contidos: predação, homicídio, incesto, estupro, roubo e violência de todo tipo passam a ter livre curso na conduta. Estão implantadas as condições extra e intrapsíquicas para uma epidemia de criminalidade, como sintoma de patologia social.

Capitalismo selvagem

Esse é o modelo teórico. Falemos dele na prática social brasileira. Para tanto, falemos de política, sem a qual essa prática não se torna inteligível. Pelo golpe de 64, os militares brasileiros ocuparam o poder político e, a pretexto de modernizar o capitalismo nacional, fizeram sem consulta à nação uma opção multinacionalista e imperialista, contra os interesses populares.

O modelo econômico imposto ao país tornou-se conhecido pelo nome de capitalismo selvagem. Tal modelo, excludente e concentrador da renda, criou uma estrutura social em que o desnível entre os que tudo têm e os que nada possuem é dos mais altos do mundo. Para chegar a esse resultado, o poder militar decretou, no país, um arrocho salarial inédito na história brasileira. Este arrocho, para tornar-se exeqüível, exigiu um grau de repressão também inédito em nossa história.

As torturas e os crimes contra a humanidade, praticados pelos organismos repressivos militares, não exprimem - obviamente - uma amor gratuito ao sadismo e à violência. Tais recursos constituíram um desapiedado instrumento da luta de classes para impor aos trabalhadores condições desumanas de vida e de trabalho. Os sindicatos e as Ligas Camponesas tiveram quebrados os seus ossos, em nome da luta anticomunista e da Lei de Segurança Nacional.

Ao mesmo tempo que espocavam as vistosas cifras oficiais com que se adornava o milagre brasileiro, cresciam os índices de mortalidade infantil e de fome do povo. O capitalismo selvagem brasileiro foi - e é - um regime genocida e infanticida, e o pacto social que impõe ao país clama aos céus por justiça. A paranóia do Brasil grande, vicejando em clima de absoluto arbítrio e impunidade, foi o artefato ideológico que levou aos empréstimos faraônicos, aplicados em obras de prioridade duvidosa e também faraônicas, acompanhadas, por sua vez, de um grau de corrupção também faraônico.

O capitalismo selvagem contraiu uma dívida externa insolúvel e arruinou o povo, espoliando-o até à pobreza absoluta. Entregou nossa soberania ao FMI. Criou no país a recessão e o desemprego, gerando desespero e revolta nas grandes massas deserdadas. O arrocho salarial, por sua vez, continua. O Brasil é hoje, no mundo, um espaço privilegiado de miséria, de fome, de injustiça social e de iniquidade. O Nordeste é das regiões mais pobres e desamparadas do Planeta.

................ Dinheiro gera dinheiro, para os que o possuem, ao passo que o trabalho cria a pobreza para os que trabalham - quando conseguem trabalhar. E, para coroar tudo, o poder arbitrário, .......... a impunidade triunfante, a cupidez sem limite, o consumismo sem freio, tudo isto, de um só lado - o dos donos da vida. Do outro lado, o rosto anônimo da miséria: .... milhões de brasileiros condenados à penúria absoluta.

Guerra Civil

A crise brasileira, tal como agora a descrevemos, corresponde minuciosa e cuidadosamente ao tipo de crise capaz de produzir o sintoma da criminalidade. Assistimos, em nossa terra, provocada pelo capitalismo selvagem, a uma guerra civil crônica, cuja assustadora violência nos enche de pasmo - e pânico.

A criminalidade dos miseráveis, dos famintos, dos desesperados, dos revoltados, exprime uma forma perversa de protesto social, que não conduz a nada e, sem dúvida, piora tudo. O delinqüente, ao cometer o seu crime, não pretende nenhuma transformação da sociedade. Ao contrário, busca identificar-se imaginariamente com o seu inimigo de classe, copiando-lhe caricatamente os defeitos e deformidades. Quando um ladrão assalta um apartamento na Vieira souto, não comete ato de desapropriação socialista. Na verdade, ele quer ocupar o lugar do milionário, usurpando-lhe o status e os privilégios.

Por outro lado, se a delinqüência e a criminalidade são formas perversas de protesto social, as estruturas de dominação do capitalismo selvagem também são formas criminosas de relacionamento social. "Mais grave do que assaltar um banco é fundar um banco" - costumava dizer Lenin, com o seu evidente exagero bolchevique. A piada do velho revolucionário pode, contudo, induzir-nos a pensar. O assalto a um banco é, obviamente, um ato delinqüente, e quem o pratica se coloca fora da lei, exposto aos seus rigores. Já o dono do banco, quando pratica a usura, cobrando juros escorchantes, capazes de paralisar a produção, também comete ato criminoso, sem contudo pagar o mesmo preço do assaltante.

A delinqüência do pobre o coloca fora da lei e o expõe à punição, tantas vezes vingativa e desumana. Com o rico, ocorre quase sempre o contrário. Ele começa por corromper a lei, pondo-a do seu lado. Com isto, comprar a impunidade e conquista, com a pecúnia, o poder e a glória. Ao mesmo tempo, usa a lei pervertida para combate o protesto criminoso do pobre. É nesse nível, duplamente perverso, que decorre a repressão policial pura e simples à criminalidade, considerada apenas como sintoma e não como efeito de uma grave patologia social. A serem assim avaliadas as coisas, a violência da criminalidade passará a exigir, para seu combate, a violência policial pura e simples. Chegaremos à aprovação da pena capital e à condecoração, por merecimento, do Esquadrão da Morte.

Não há dúvida de que a criminalidade, embora corretamente avaliada como sintoma, nem por isto pode dispensar o tratamento policial conveniente. Há que reprimir, com severidade, os atos anti-sociais de delinqüência, de pobres e ricos. Há que aumentar a eficiência material e moral do aparelho de polícia. Há que amar e praticar a verdadeira justiça.

Até agora, temos estudado o protesto social dos oprimidos sob a forma da criminalidade e da delinqüência. Isto ocorre, como vimos, quando a ruptura com o pacto social provoca, por retroação, a ruptura com o pacto edípico, havendo o retorno do recalcado. Esta, entretanto, não é - felizmente! - a única forma possível de protesto dos oprimidos, na medida que o pacto social venha a tornar-se intolerável. É viável romper-se com o pacto social sem que isto implique a ruptura com a Lei do Pai - o ou Lei da Cultura. Mais ainda: esse rompimento pode fazer-se exatamente em nome do elenco de valores que constituem o Ideal de Eu, cimento identificatório integrador, intimamente ligado à função paterna.

Em tal caso, a ruptura com o pacto social perverso, ao invés de provocar a ruptura do pacto edípico, vai reforçá-lo e confirmá-lo. A luta contra a sociedade se fará, não através da criminalidade, mas em nome de altos valores reverenciados pela cultura: a liberdade, a igualdade, a fraternidade, a dignidade do trabalho, o pleno respeito à pessoa humana e aos seus direitos fundamentais.

......... É por aí, é por esse leito, é no rumo da luta que se propõe a construir o futuro do povo, é por aí que se poderá enfrentar, radicalmente, o problema da criminalidade, na medida que suas origens sejam expostas, questionadas e atacadas - de maneira construtiva. A criminalidade é uma forma enlouquecida de protesto. É preciso que a indignação e a inconformidade do povo possam formular-se em termos políticos, de modo a torná-la desnecessária e, portanto, verdadeiramente ultrapassável.

Ninguém duvida que a criminalidade, no momento, pelo caráter que adquiriu, de guerra civil não declarada, está a exigir um tratamento sintomático, criterioso e enérgico. É preciso mobilizar a máquina da polícia, equipando-a, moralizando-a e humanizando-a.

............. É preciso derrotar o arbítrio, a corrupção, a indignidade, a incompetência. É preciso acabar com a recessão, o desemprego e ao arrocho salarial que matam o povo de fome. É preciso matar a fome do povo.

E, por fim, embora não em último lugar, é preciso ter vergonha e amor à Pátria. Quando isto ocorrer, a patologia social e seu efeito - a criminalidade - estarão debelados.

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(Este trabalho foi apresentado no simpósio "o Rio conta o Crime", promovido pelas Organizações Globo)

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09 agosto 2010

PACTO EDÍPICO E PACTO SOCIAL (da gramática do desejo à sem-vergonhice brasílica)

Folhetim – Suplemento da Folha de São Paulo nº 347 de 11/set/1983

Hélio Pellegrino



A ruptura com o pacto social, em virtude de sociopatia grave – como é o caso brasileiro -- pode implicar a ruptura, ao nível do inconsciente, com o pacto edípico. Não nos esqueçamos que o pai é o primeiro e fundamental representante, junto à criança, da Lei da Cultura. Se ocorre, por retroação uma tal ruptura, fica destruído, no mundo interno, o significante paterno, o Nome do Pai, e em conseqüência o lugar da lei. Um tal desastre psíquico vai implicar o rompimento da barreira que impedia – em nome da Lei – a emergência dos impulsos delinquenciais pré-edipicos. Assistimos uma verdadeira volta ao recalcado. Tudo aquilo que ficou reprimido – ou suprimido – em nome do pacto com o pai, vem à tona, sob forma de conduta delinqüente e anti-social.


Vou falar sobre o Édipo de um ponto de vista psicanalítico. Sobre Édipo, personagem de Sófocles, e sobre Édipo, herói de uma velha lenda tebana na qual se apoiou Sófocles para escrever sua obra. De um ponto de vista psicanalítico, há logo um curiosíssimo problema: Édipo personagem herói legendário, dentro de uma ética estritamente freudiana, não sucumbiu ao seu complexo de Édipo. Ele foi vítima - e achou-se tràgicamente preso - de vicissitudes pre-edipicas. Não nos esqueçamos dos dois marcos fundamentais da vida de Édipo: Tebas, e Corinto.

Édipo conseguiu sair de Corinto, conseguiu desligar-se dos pais que o haviam criado e amado e que, portanto, o haviam preparado para a aventura da liberdade. No entanto ficou atado aos pais de Tebas, que o haviam votado a morte, e foi com relação a eles que se consumou a tragédia. Recapitulemos a história de Édipo: filho de Laio e Jocasta filhos reis de Tebas. Antes de seu nascimento ouviu Laio do oráculo a predição de que teria um filho•que o mataria e se casaria com a mãe.•Ao nascer Édipo não recebeu dos pais nenhum nome – o inominado, portanto - foi condenado a morte por Laio e Jocasta. Esta entregou-o a um pastor, para que o matasse. O pastor levou o recém•nascido ao monte Citerão e, apiedando-se dele, ao invés de matá-lo furou-lhe os pés e o atou, com uma corda, a uma arvore. Fica, aqui, simbolicamente, prefigurada uma das vertentes capitais do destino de Édipo. A árvore é um clássico símbolo materno. Édipo por um lado, jamais conseguiu desamarrar-se da mãe. Ele ficou atado a ela, agarrado à mãe, como um náufrago se agarra à sua tábua de salvação. O desamor da mãe ao recém nascido corresponde ao naufrago deste. Se sobrevive, embora odiando-a por um lado, jamais se arrancará da mãe que o rejeitou.

Prosseguindo a história: um pastor de Corinto, de passagem pelo bosque, viu o pequeno Édipo, dependurado a arvore, e o resgatou, cortando, a corda que o amarrava. Esse pastor desempenhou, em termos psicanalíticos, a função maiêutica do pai. Ele cortou o cordão umbilical que o ligava a arvore-mãe. O pai ajuda, de maneira decisiva, a partejar a subjetividade do filho, permitindo-lhe desfusionar-se – diferenciar-se - da mãe.

Em Corinto, Édipo (oiden pous: o que tem os pés inchados) foi acolhido por Mérope e Políbio, que não tinham filhos, e foi criado como filho legítimo, ignorando a verdade sobre sua origem. Já adulto, ouviu num banquete, de um conviva bêbado a notícia de que não era filho legitimo de Mércope e Políbio. Profundamente torturado, consultou o oráculo e ouviu dele a predição terrível: seria assassino do pai, casar-se-ia com a mãe e geraria uma prole nefanda.

INVENTANDO OS PRÓPRIOS CAMINHOS

Para fugir ao destino, Édipo abandonou Corinto. Ele conseguiu fazê-lo já que não estava atado aos pais que respeitaram e amaram: o amor é condição necessária - e suficiente – da liberdade. Em viagem, na tentativa de ser o inventor de seus próprios caminhos, Édipo numa encruzilhada, tem violenta altercação com um velho, acompanhado de escolta. Enfrenta-os e mata o ancião e alguns do seu grupo, sem saber que consumara o parricídio. Seguindo estrada, nas proximidades de Tebas tem noticias de que a Esfinge desafiava, com enigmas, os que por ela passassem devorando os que os que não o decifravam. Édipo aceita o desafio, enfrenta a esfinge e decifra o enigma que lhe havia sido proposto: “Qual é o animal que, pela manhã, anda com quatro pés, ao meio dia dom dois e, à tarde, com três pés?” “É o homem” – respondeu Édipo - “que na infância gatinha idade adulta anda erguido e, na velhice se apóia num bastão.” A Esfinge roída de despeito, precipitou-se despedaçada, no abismo. Édipo, por tê-la destruído, recebeu, como premio, a mão de Jocasta, viúva de Laio, passando a reinar sobre Tebas.

É curioso notar que Édipo recebeu Jocasta como troféu, sem sequer conhecê-la. Com isso fica caracterizado o vinculo arcaico que o liga a mãe, anterior a uma verdadeira escolha de objeto. A destruição da Esfinge, por sua vez, corresponde à derrota da imago da mãe má – rejeitadora, devoradora e filicida. Temos aí uma cisão da figura materna – de Jocasta, portanto -, e a derrotada imago da mãe aterradora e perseguidora. Foi graças a esse mecanismo de defesa que Édipo conseguiu casar-se com Jocasta depois de ter matado Laio.

No casamento foram gerados quatro filhos: Eteócles, Polinice, Ismênia e a doce Antígona. Édipo reinou sobre Tebas até que, pressionado pelos flagelos com que as Furias – ou Eríneas – castigavam a cidade, em virtude do assassinato de Laio, ordenou sua rigorosa apuração. As investigações se fizeram e, ao fim delas, Édipo foi descoberto como parricida e incestuoso. Esta, também devorada de culpa, enforcou-se, reproduzindo a figura da pequena criança votada à morte, e dependurada numa corda.

* * * * * *

Vejamos agora, a concepção freudiana do complexo de Édipo. Diz Freud: entre os 3 e os 5 anos, a criança chega à organização fálica – ou genital infantil – de sua libido. No menino- vamos falar do Édipo masculino, em sua forma direta – a excitação sexual se organiza, predominantemente, em torno do pênis. Este órgão recebe, por isso, uma extraordinária valorização narcísica. Nessa etapa – fálica - de sua evolução libidinal, o menino deseja sexualmente a mãe, a partir de uma posição genital infantil, e odeia o pai, rival que lhe impede a satisfação de sua paixão incestuosa. O menino quer possuir a mãe, sexualmente, e quer matar o pai. Ele luta contra a interdição do incesto que o separa da mãe. Quer matar o pai, seja como rival, seja como representante da Lei da Cultura.

O Édipo representa a derradeira etapa de um progressivo – e doloroso – processo de separação: corte do cordão umbilical, desmame e, por fim proibição do incesto, ao nível da genitalidade infantil. O Édipo obriga o ser humano a superar a infância, isto é, sua dependência a mãe e ao desejo dela e, nessa medida corresponde a um segundo nascimento – segunda expulsão do paraíso.

De que maneira o menino transcende, segundo Freud, o seu complexo de Édipo? Ele o transcende, inicialmente, pelo medo que passa a ter da castração. E aqui se articula com o complexo de Édipo, o complexo de castração, de importância central no pensamento psicanalítico. O menino descobre, na época do seu Édipo, isto é, na fase fálica, a diferença anatômica dos sexos, Ele verifica, aterrorizado, que a menina não tem pênis – e que, a mãe também não possui. Ele passa a ter medo de que o mesmo lhe possa acontecer, como castigo imposto pelo pai, em virtude de seus impulsos incestuosos e parricidas. A fantasia de castração corresponde também um dos fantasmas originários, aos quais Freud atribui dimensão filogenética, arquetípica. O menino, como vimos, valoriza extraordinariamente o seu pênis, e atribui altíssimo significado narcísico. O medo à perda do pênis – filogeneticamente condicionado – obriga-o a um recuo. O menino acaba, na hipótese mais favorável, por abrir mão do seu projeto incestuoso. Ele internaliza a proibição do incesto e se identifica com os valores paternos. Dessa forma, cumpre uma etapa fundamental, que o prepara no sentido de tornar-se sócio da sociedade humana.

Aqui se levanta o problema crucial da relação do ser humano com a lei. É claro que nos referimos à Lei primordial, que marca a passagem – o salto – da natureza para a cultura. O modelo, contudo, tem validade geral, e pode ser aplicado aos vários níveis institucionais em que transcorre a aventura humana. Não há duvida de que a Lei, para ser respeitada, precisa ser temida. Nesse sentido, para resolução do Édipo, é necessário o temor à castração, segundo a concepção freudiana. Uma lei que não seja temida - que não tenha potencia de interdição e de punição – é uma lei fajuta, de fancaria, impotente. No entanto, o temor à lei, sendo necessário, é absolutamente insuficiente para fundar a relação do ser humano com a lei. Uma lei que se imponha apenas pelo temor é uma lei perversa, espúria – lei do cão.

Só o amor e a liberdade, subordinando e transfigurando o temor, vão permitir uma verdadeira, positiva – e produtiva – relação com a lei. A autentica aceitação de interdito do incesto, de modo a torná-lo nódulo crucial capaz de estruturar uma identificação posterior com os ideais da cultura, só é possível na medida em que a criança seja amada e respeitada como pessoa, na sua peculiaridade, pelo pai e, antes dele, pela mãe. É o amor materno que funda a personalidade, para a criança, de vencer a angustia de separação, tornando-se um ser outro com respeito à mãe. O amor da mãe, já modelado pela cultura, prepara o advento do terceiro, do pai, cuja entrada em cena através da estrutura triádica, ajuda a criança a construir sua própria liberdade e autonomia.
Há um momento, no Édipo, em que a criança tem que assumir sua condição de terceiro termo excluído. Ela tem que aceitar-se excluída da relação de amor dos pais. O menino, no Édipo, tem barrado o seu acesso sexual a mãe. Esta perda, no entanto, representando o fechamento de uma porta, deve abrir, no futuro, inúmeras outras portas. O Édipo proíbe o incesto, sem duvida, mas permite todas as outras escolhas que não sejam incestuosas. A Lei existe, não para humilhar e degradar o desejo, mas para estruturá-lo, integrando-o no circuito do intercâmbio cultural. A estrutura edípica representa a gramática elementar do desejo, a partir: de sujas regras vai ser possível a articulação do discurso desejante. Assim como, na língua as contraintes lógico-sintáticas são a condição da invenção dos discursos - a langue, a partir do cuja estrutura emerge a parole -, assim também o Édipo deve representar a constrição essencial que vai permitir ao desejo desferir o seu vôo.

O Édipo é a Lei do desejo. A Lei do desejo pode - e deve - corresponder um desejo da Lei. A Lei existe sob a égide de Eros - para. servir a Eros. Ela é, por tanto um produto erótico, está na base do processo civilizatório, desde sua origem, na raiz do esforço individual e coletivo no sentido da hominização - e da humanização - do ser humano. Existe uma plena possibilidade de desejar-se a Lei e o terceiro termo paterno - a metáfora paterna - que o representa. A propósito, relato-lhes o primeiro sonho de um paciente, muito• expressivo. O sonhante está fechado numa cabine de navio em naufrágio. A água sobe, ele vai afogar-se. Olha para cima e percebe uma vigia de vidro, por onde poderia sair, se conseguisse rompê-la. Desesperado, lança mão de uma longa barra de ferro, que está a um canto da cabina e, com ela quebra a vigia. O sonho é belíssimo. A barra de ferro representa o• falo paterno e a força do Pai de cuja ajuda o sonhante necessita para escapar ao mortífero desejo de retorno ao útero materno. - ou ao engolfante e tojo-poderoso desejo da mãe. Esse significante paterno, resgatado. durante o processo analítico; veio a constituir o eixo do esforço do paciente na construção de si próprio, enquanto sujeito.

* * * * * *

Vejamos agora o que diz a• antropologia psicanalítica,- na interpretação que faz do processo civilizatório. Para Freud, este processo implica, necessariamente, uma renúncia pulsional tanto erótica quanto agressiva. Civilizar é, portanto - e por um lado -, reprimir ou suprimir. Tal conceito fica expresso, com clareza, no livro O Mal-estar da Civilização e, através dele ê possível compreender a presença, em cada ser humano, de um •certo - e inevitável - rancor contra a cultura.

Entretanto, a intensidade e a violência da repressão - ou da supressão – irão depender, não apenas das necessidades intrínsecas ao próprio processo civilizatório, mas da intensidade da luta de classes que nele se desenvolve. Freud não foi bastante lúcido, nesse sentido. Ao analisar a sociedade capitalista, que tomou como modelo, não se deu conta de que, nela, a intensidade da repressão existe, não apenas em função das exigências do processo civilizatório, mas da injustiça social, que é preciso garantir _ e manter – pela força. Na sociedade capitalista existe – inevitavelmente – aquilo que Marcuse denunciou como sobre-repressão, em virtude da exploração do homem pelo homem. Onde há injustiça e luta de classes, há sobre-repressão. Temos, nessa medida, o direito de supor que, numa sociedade sem classes dispensada da violência repressiva necessária à manutenção da injustiça, restará a exigência de uma mínima renúncia pulsional, para que o tecido social se estruture e articule.

Mas, voltemos ao Édipo, pedra angular, segundo Freud, dá estrutura intrapsíquica e do processo civilizatório. A criança, na vicissitude edípica, tem que renunciar às suas pulsões incestuosas e parricidas. Tem que renunciar, portanto, à onipotência do seu desejo e ao principio do prazer, adequando-se ao principio de realidade. Essa renúncia se faz em nome do temor, subordinado ao amor. A solução do complexo de Édipo implica um pacto – uma aliança - com o pai e com a função paterna. Ora, num pacto, sob a égide da concórdia, ganham os dois lados: No Édipo, com o acordo, ganha a sociedade, representada pelo pai e pela família, e tem que ganhar a criança. O pacto edipiano implica mão dupla, um toma lá, dá cá. A criança perde, mas ganha. Em troca da renúncia que lhe é exigida, tem o direito de receber nome, filiação, lugar na estrutura de parentesco, acesso à ordem do simbólico, além de tudo o mais que lhe permita desenvolver-se e sobreviver - vivendo. A criança tem que receber do Édipo, as ferramentas essenciais que lhe permitam construir-se como sujeito humano. Com isto, ela ama e respeita o pacto que fez e, nesta medida, fica preparada para identificar-se com os ideais e valores da cultura à qual pertence.

A Lei da cultura e o pacto social

O pacto com a Lei da Cultura – ou Lei do pai – é a tarefa primordial da criança, na primeira etapa do seu desenvolvimento psicossexual. Transposto o Édipo e suas vicissitudes, cheias de som e fúria, a criança entra no período de latência e nele inicia o processo de aquisição de uma competência, pela qual, no futuro, através do trabalho, irá contribuir para a construção - e a transformação - da vida social. A Lei da cultura representa, por assim dizer, o batismo do ser humano, a marca da passagem que o faz ingressar, como postulante ou neófito; no circulo de intercâmbio social. O Édipo e a linguagem, que são estruturalmente articulados, representam os grandes veículos de socialização da criança.

Na idade adulta, ao pacto com a Lei da Cultura, centrado em torno da renúncia, aos impulsos sexuais, vai acrescentar-se um pacto social, estruturado eu torno da questão do trabalho. O trabalho é o elemento mediador fundamental, por cujo intermédio, como adultos, nos inserimos no circuito e intercâmbio social, e nos tornamos de fato e de direito-sócios plenos da sociedade humana. O pacto social sucede - e se articula – com o pacto sexual. Ele confirma - e amplia – a aliança com a Lei primordial. Ele está para a Lei assim como a crisma está para o batismo, na religião cristã.

No pacto social, através do trabalho, pede-se ao ser humano que confirme a sua renúncia pulsional primígena, através da aceitação do principio de realidade. Trabalhar é inserir-se no tecido social por mediação de uma práxis aceitando a ordem simbólica que o constitui. Trabalhar é disciplinar-se, é abrir mão da onipotência e da arrogância primitivas, é poder assumir os valores da cultura com a qual, pelo trabalho, nos articulamos organicamente. O pacto com a Lei do pai prepara – e torna possível – o pacto social. Este exige renuncias, e uma função simbolizadora, que só serão viáveis na medida em que uma interdição originária – a proibição do incesto – lhes prepara o aposento.

Se a Lei da Cultura é um pacto e, portanto, implica deveres e direitos, tendo mão dupla - toma lá, da cá -, sem o que o pacto fica invalidado em sua estrutura, também o pacto social implica direitos e deveres e tem, necessariamente, mão dupla, sem o que não conseguirá sustentar-se. O pacto primordial - repitamo-Io - prepara e torna possível um segundo pacto, em torno da questão do trabalho. O primeiro pacto garante e sustenta o segundo, mas este, por•retroação, confirma - ou infirma - o primeiro. O pai é o representante da sociedade, junto à criança. A má integração da Lei da Cultura, por conflitos familiares não resolvidos, pode gerar conduta anti social, mas uma patologia social pode também ameaçar - ou mesmo quebrar - o pacto com a Lei do Pai.

Assim como a aceitação da Lei da Cultura tem que abrir, para a criança, a possibilidade de ganhos fundamentais, assim também o pacto. social não pode deixar de criar, para o trabalhador, direitos inalienáveis. Ofereço à sociedade minha competência e minha renúncia ao princípio do prazer, sob forma do meu trabalho. Esta oferta me foi exigida pela própria sociedade, para que eu fosse aceito como sócio dela. Em nome do exercício do meu trabalho, tenho o direito sagrado de receber o mínimo indispensável à preservação de minha integridade física e psíquica. A dolorosa - e laboriosa aquisição da competência, enquanto trabalhador, é a parte que me cabe, no pacto com a sociedade. O retorno - o dá cá, resposta ao toma lá - compete à sociedade.

Se o pacto social tem mão única, se os direitos do trabalho são desrespeitados e aviltados, ele pode romper-se, implicando essa ruptura gravíssimas conseqüências. A sociedade só pode ser preservada - e respeitada - pelo trabalhador na medida em que o respeite e o preserve. Se o trabalhador for desprezado e agredido pela sociedade, tenderá a desprezá-Ia e agredi-la, até a um ponto de ruptura. Na melhor das hipóteses, essa ruptura poderá levar o trabalhador a tornar-se um revolucionário. Ele rompe com a sociedade não para atacá-la cegamente, mas para transformá-la revolucionariamente, através da ação de massas. Em tal caso; a ruptura com o pacto social não chega a provocar a ruptura com a Lei da Cultura - ou Lei do Pai. Apesar da injustiça social, ou melhor, por causa dela, o revolucionário se apóia nas melhores e mais altas tradições e •virtudes libertárias do seu povo. Nessa medida, mantém-se fiel ao seu Ideal de Eu e preserva, com isto, a aliança com o Pai simbólico.

Tal hipótese é a melhor das hipóteses. Examinemos a pior delas – com freqüência a mais freqüente. O pacto com a sociedade, como ficou visto, é preparado - e caucionado - pelo pacto primordial.• A renúncia edípica prefigura e torna possível a renuncia posterior, exigida pelo trabalho. Se o pacto social é iníquo, e avilta o trabalho, ele vai aviltar e• tornar iníqua a renúncia pulsional por ele próprio exigida. O amor ao trabalho só é possível na medida em que os direitos do trabalhador sejam minimamente respeitados. Se isto não ocorre, há uma ruptura do pacto social. O trabalho torna-se sem sentido, aviltante e humilhante, tanto quanto o sacrifício e a renúncia que, em seu nome, me disponho a fazer. Rompo, aí, com a sociedade, e esta ruptura terá, inevitavelmente, profundas repercussões intrapsiquicas, que irão sacudir, sob a forma de um abalo sísmico, os fundamentos do pacto primordial com o Pai simbólico – e com a Lei da Cultura.

A ruptura com o pacto social, em virtude de sociopatia grave – como é o caso brasileiro -, pode implicar a ruptura, ao nível do inconsciente com o pacto edípico. Não nos esqueçamos que o pai é o primeiro, e fundamental representante, junto à criança, da Lei da Cultura. Se ocorre, por retroação, uma tal ruptura, fica destruído, no mundo interno, o significante paterno, o Nome-do-Pai e, em conseqüência, o lugar da Lei. Um tal desastre psíquico vai implicar o rompimento da barreira que impedia, em nome da Lei – a emergência• dos impulsos delinquenciais pré-edípicos, predatórios, parricidas, homicidas e incestuosos. Assistimos a uma verdadeira volta do recalcado. Tudo aquilo que ficou reprimido ou suprimido - em nome do pacto com o pai, vem à tona, sob forma de conduta delinqüente e anti-social.

É essa a chave psicanalítica para compreensão do surto crescente de violência e delinqüência que dilacera o tecido social brasileiro, nas grandes cidades. Existe, em nosso país, uma guerra civil crônica, sob a forma de assaltos, roubos, assassinatos, estupros - e outras gentilezas do gênero. Esta guerra foi declarada - e é mantida - pelo capitalismo selvagem brasileiro, pela cupidez e brutal egoísmo das classes dominantes, nacionais e multinacionais que o sustentaram e expandiram, a custa da miséria do povo.

A favor do grande capital

Em verdade, o golpe militar de 64 - contra-revolução preventiva, controlada pelos interesses americanos - foi desfechado primordialmente, contra a classe trabalhadora que constituía maioria da população brasileira. O golpe de 64 se fez, contra o trabalho, a favor do grande capital, nacional e multinacional. Os militares, em nome da Doutrina de Segurança Nacional, fizeram, contra o povo, uma opção imperialista. Esta opção implantou em nosso país, um modelo econômico de capitalismo selvagem, excludente e concentrador de riqueza, que arrastou à •miséria e ao desespero a imensa maioria do povo. O trabalho em nossa pátria, é degradado e aviltado. Chega-se, agora ao luxo extremo - e sinistro - da recessão e do desemprego, comandado da Doutrina de Segurança Nacional, pelo Conselho de Segurança Nacional. Voltamos às origens!

Os migrantes, os pau-de-arara, os boias-frias, os 40 milhões de brasileiros reduzidos à pobreza absoluta, esses não têm nada - absolutamente nada - que os leve a respeitar e prezar a sociedade brasileira. Eles são cuspidos e enxovalhados, enquanto seres humanos e força de trabalho. Ao mesmo tempo espocam os escândalos impunes: Riocentro, Proconsult, Baumgarten, Capemi, Delfin. O pobre absoluto não tem por que manter o pacto social com uma sociedade que o reduz à condição de detrito, ao mesmo tempo que, em seus estratos dirigentes, se entrega à corrupção e ao deboche impune. Ele tem toda razão de odiar – e repelir - essa sociedade. Ao romper com o pacto social, na medida em que não tenha uma alternativa político-transformadora - e libertadora – rompe, ao mesmo tempo, e por retroação, com a Lei da Cultura. Comete, no mundo inconsciente, parricídio puro e simples e, tendo destruído as barreiras antepostas os seus impulsos primitivos, entrega-se a eles e parte para a delinqüência: roubo, homicídio, estupro, seqüestro – e tudo o mais.

O surto de delinqüência que, no momento, cresce nas grandes cidades, de maneira assustadora, é uma resposta perversa à delinqüência mais do que perversa - porque institucionalizada - do capitalismo selvagem brasileiro. A criminalidade do povo pobre é - pelo menos - una resposta desesperada, e se faz fora da lei - contra a lei. Pior que ela é a delinqüência institucionalizada dos ricos, dos banqueiros, dos que lucram 500 por cento ao ano, dos que se locupletam com a especulação desenfreada, dos que entregam a soberania nacional à voracidade•predadora da finança internacional.

É mais honrado - e menos perverso - ser delinqüente fora da lei, do que sê-lo em nome da lei, acobertado e protegido por ela. O acanalhamento da lei, a corrosão dos ideais que justificam a vida, o aviltamento do trabalho humano, centro do processo civilizatório a idolatria à segurança nacional.

A delinqüência das massas não é, obviamente, resposta adequada para a delinqüência do capitalismo selvagem brasileiro o que é preciso é que as massas se politizem e se organizem, pois só elas serão capazes de transformar radicalmente a sociedade brasileira, de modo a por um fim ao FMI, ao autoritarismo militar e noutras manifestações que perturbem a marcha do povo no sentido da liberdade, da igualdade e da fraternidade.

Sociopatia e delinqüência são faces de uma só rnoeda. A ruptura com o pacto social precipita, com grave freqüência, a ruptura com a Lei da Cultura. É preciso mudar o modelo econômico e social brasileiro por uma questão de higiene mental, moral - e política. Por uma questão de vergonha.



Digitado por Rogério Silva

09 junho 2010

PAI É PRESO NO MARANHÃO POR MANTER EM CARCERE A FILHA E SETE FILHOS/NETOS


O Pai ideal é proveniente, ou, se quisermos, é um filho da metáfora paterna, enquanto podemos descrevê-la como uma inversão que se opera, desde a idade das primeiras simbolizações, do ser do pai no Pai do ser. Esta inversão constitui um caso particular, mas certamente o mais decisivo, da indução do imaginário pelo simbólico. E esta indução faz com que, na fase fálica, o pai apareça como sendo duplamente possuidor: da mãe e do que é necessário para possuir a mãe. Esse efeito imaginário equivale, pois, a uma crença ou julgamento de atribuição. Atribuição de quê? De um objeto do desejo que não é este o objeto, isto é, um objeto singular localizável ou numericamente um, e um objeto comum, múltiplo ou multiplicável (como é o caso para todo objeto real); mas um objeto que basta para suscitar o desejo, pra não dizer comandá-lo, um objeto, em suma, que tem a singularidade de que ninguém o porta; vale dizer que a atribuição é do significante falo ao pai simbólico como tal, e é precisamente a partir daí que se prossegue a interrogação sobre a existência de um pai que seja dessa índole.

Estudos sobre o Édipo de Moustapha Safouan, pag. 134, Zahar Ed.


09/06/2010-14h20
Pai é preso por manter filha em cárcere e ter sete filhos com ela no MA
ROBERTA GOMES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA de S. Paulo, DE SÃO LUÍS
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O lavrador José Agostinho Bispo Pereira, 54, foi preso em flagrante no município de Pinheiro --a 340 km de São Luís (MA)-- sob acusação de abusar, por cerca de 15 anos, da filha --hoje com 28 anos. Pereira teve com ela sete filhos, e os mantinha em cárcere privado no povoado Experimento, a uma hora do município.

Pereira confessou o crime e responderá por cárcere privado e estupro de vulnerável, além de abandono material, abandono intelectual, maus-tratos, pelas condições em que se encontravam a jovem e as crianças. Ele está detido na Delegacia Regional de Pinheiro.

A filha e as sete crianças estão em um abrigo, onde recebem acompanhamento psicológico e médico. A prisão do lavrador foi feita na noite de terça-feira (8), após 15 dias de investigação da Polícia Civil. O caso chegou à polícia por meio de uma denúncia anônima durante uma ação de combate ao abuso sexual de crianças e adolescentes.

Segundo os delegados responsáveis pela investigação, o acusado começou a abusar da filha quando ela tinha 12 anos e, desde então, vivia maritalmente, escondido no povoado. Com a filha, Pereira tem filhos de 12, 8, 6, 5, 4 e 2 anos, além de um bebê com pouco mais de dois meses.

Nem a moça de 28 anos nem os filhos sabem ler. Segundo a delegada Adriana Meireles, há uma grande dificuldade de se comunicar com eles. Ainda segundo a polícia, Pereira já estava aliciando as duas meninas de 8 e 6 anos.

"Encontramos uma situação bem delicada nesse caso. Foi difícil convencer essas crianças e a moça a entrarem no carro, por exemplo. Eles nunca tinham saído do povoado. Quase não falam, são muito traumatizadas", comentou a delegada. Ao chegar na casa escondida no povoado, foi constatada a falta de comida e de roupas.

De acordo com a polícia, a mulher de Pereira e mãe da jovem abandonou a família quando a filha era pequena. O inquérito da Polícia Civil deverá ficar pronto em 10 dias e será encaminhado para a Promotoria do município de Pinheiro.

Há dois anos um caso semelhante teve repercussão em todo mundo. Em março de 2009, o engenheiro aposentado Josef Fritzl, 73, foi condenado a prisão perpétua por estuprar e prender a filha no porão de sua casa, em Amstetten, no leste da Áustria, por 24 anos. Eles tiveram sete filhos.

20 maio 2010

FEMINILIDADE: UMA QUESTÃO DE PODER OU DE POTÊNCIA?

Por Angela Villela*


Para Dóris, amiga eterna,
pura inspiração de potência.

Num ano eleitoral em que temos duas mulheres candidatas ao posto máximo de poder, parece oportuna uma reflexão sobre essa tão vital relação. Até porque, por outro lado, a força do voto feminino terá uma representação de cerca de 30,3% do eleitorado brasileiro, segundo pesquisas recentes. Entretanto, o que pode ser interpretado como uma grande vitória, após o longo processo feminista de dissolução de hierarquias que sempre caracterizou a construção das sociedades, paradoxalmente, pode vir a ser, também, um retrocesso desastroso. Se não refletirmos, de antemão, sobre as condições e possibilidades do que representa essa eleição e essa relação, estaremos condenados a abrir mão das transformações e práticas políticas significativas, advindas de tantas lutas. Serão desperdiçadas inúmeras conquistas que aconteceram nas últimas décadas, graças aos deslocamentos de posições e movimentos produzidos pelo feminismo. Pois a política, que sempre teve seus conflitos e antagonismos performatizados por sujeitos com classe, raça, sexualidade e gênero diferenciados, na verdade, paralelamente, foi regida em sua maior parte por um único signo, o da masculinidade. Agora, uma rara oportunidade surge, não no que diz respeito especificamente ao gênero, um homem ou uma mulher, mas sim no que se refere à criação de uma outra mentalidade. E o que se quer dizer com isso? É claro que não há, aqui, a possibilidade de uma análise histórica profunda de como foram demarcadas outras territorialidades, assim como é evidente que, para que isso acontecesse, ocorreram radicalizações, exageros e equívocos, partes inevitáveis das tentativas de superação de um lugar de menos-valia e de inferioridade, que nunca deixaram de fazer parte da longa jornada feminista. Na ânsia de igualdade de direitos, muitas mulheres se perderam de sua feminilidade e da sua real potência, na medida em que estabeleceram semelhanças com o discurso masculino em relação ao poder, tornando-se extremamente fálicas. Se por vários aspectos tivemos evoluções, por outros temos sido espectadores de degradações. Ao invés de virarem sujeitos de seu próprio discurso, certas mulheres caíram no engodo de permanecerem, apenas, nos velhos lugares de objetos de consumo. Silicones e peitos turbinados viraram sinônimos de “segurança”, o que diga -se de passagem, não só empobreceu as relações afetivas, como, também, produziu essa distorção entre poder e potência, o que acabou causando um distanciamento incomensurável, um abismo, entre mulheres e homens. Nessas tentativas, elas se perderam de características fundamentais que deixaram um vazio, não somente em suas identidades, assim como em suas trocas afetivas, sócio- políticas e existenciais. Sem falar no desejo impossível de igualdade, já que este seria uma injustiça para com os diferentes. Isso fez com que ganhos relativos à equivalência realmente se concretizassem.

Essa a questão que está posta em jogo, através das candidaturas de Dilma Roussef e Marina Silva. A velha pergunta que Freud não conseguiu responder - “Afinal, o que quer uma mulher?- pode ser aqui atualizada: “Afinal, o que querem Dilma e Marina com o poder?”Repetirão o mesmo ou vem para assumir a diferença? Conseguirão escapar das artimanhas e seduções tão fortemente demarcadas pelas características masculinas nos lugares de poder? Serão elas capazes de capitalizar a seu favor isso que é a principal característica da feminilidade, ou seja, a criação de um novo lugar, onde o sensível prevaleça? A presença feminina na presidência trará um outro olhar sobre a nossa realidade sócio-política? Que ética prevalecerá? Conseguirão elas serem artistas no mais puro sentido da Arte, da criação, ou continuaremos apenas a ver a prevalência do capital sobre os valores?

Refletir sobre essas questões é fundamental, inclusive, por vivermos em tempos de um certo autoritarismo, onde um presidente sustentado por alto índice de aprovação, se apropria do imaginário popular para criar um culto de que sua candidata “é o cara”, o que nos leva a supor um tipo de unidade que caracteriza Dilma Roussef como uma extensão (que ela endossa). Podemos nos arriscar a dizer que o presidente Lula, em sua ânsia de continuísmo, ignora e apaga a diferença sexual, pois estaria referido a um modelo que nos oferece um sujeito ou agente pronto e acabado, enquanto que o significante “mulher” nos remete a uma multiplicidade de lugares, a uma construção, a uma singularidade que se apresenta, não se representa.

Assim sendo, parece decisivo questionar as garantias dadas a priori, face à tarefa tão significativa de democratização radical que essa eleição representa. Derrida dizia que a grande vitória política será quando houver uma desconstrução dos registros vigentes. E isso não diz respeito somente ao gênero, masculino e feminino, mas sim a uma mudança de parâmetros, uma verdadeira revolução do pensamento na construção de outra ordem de conhecimento. Ao invés de uma posição confrontativa, a negociação de território, a flexibilidade, a delicadeza, uma diferença sutil que estabeleça um novo interesse para o mercado, através da percepção e da sensibilidade. Um outro tipo de força como instrumento de poder, uma outra estética. É isso que significa “o exercício da potência”, radicalmente oposto ao “exercício de poder”. Potência nos sentido de forças que são inseparáveis de uma espontaneidade e de uma produtividade, forças que são elementos, inclusive, de socialização.No sentido spinozista, “forças que se definem por relação a uma infinidade de partes que compõem cada corpo e que já o caracterizam como um multitudo .O ser que se constrói em Spinoza é uma realidade explosiva”(**)

Ao invés de nomearmos essa possibilidade como um tipo de política pós feminista, o que traz a idéia de algo resolvido, podemos caracterizar essa oportunidade como um “momento do feminismo”, como bem diz Heloísa Buarque de Hollanda. Ao longo da história, inúmeras mulheres foram líderes políticas. Elizabeth I, por exemplo, defendeu arduamente a Inglaterra contra a Armada Espanhola e transformou Londres numa metrópole cultural, enquanto que Catarina, a Grande, influenciada pelos pensadores do Iluminismo, revelou-se uma grande reformadora, ao modernizar a administração pública e o código penal da Rússia. Uma frase célebre, porém, de Elizabeth I: “Eu sei que tenho um corpo frágil de mulher, mas tenho o coração e a coragem de um rei” demonstra, que a ambição que caracterizou a ocupação dos lugares de poder por essas e outras mulheres, foi atravessada, quase sempre, pelas referências masculinas, com raras exceções. Margaret Thatcher, já na década de 70, reforça essa lógica ao enaltecer as vantagens da liderança feminina, afirmando que: “Se precisarem de alguém que profira discursos, peguem um homem. Se houver um problema para ser resolvido, é melhor que perguntem a uma mulher.”

Não interessa a incisão histórica que essas mulheres tiveram. O paradoxal é que, em positivo ou em negativo, elas demonstraram uma força política incomum, num universo eminentemente regido pelos homens, por manifestarem as contradições e expressarem em corpo e obra o luminoso e o obscuro, a fragilidade e a coragem, ou seja, as incógnitas profundas que habitam o humano, independente do gênero.

Se trouxermos isso para a atualidade, temos um bom exemplo das características da feminilidade que apontávamos anteriormente e que tem a ver com a abertura do pensamento e não de sua radicalização. Há poucos dias atrás, uma artista franco-marroquina, Majida Khattari, questionou com muito humor a questão da burca que invade a cena cultural francesa e os clichês de um lado e de outro. Num desfile- performance , ela colocou na passarela uma mulher totalmente envolta num véu, enquanto que na contramão, caminhava uma outra modelo praticamente nua, tentando equilibrar-se num salto altíssimo. Para ela não há diferença entre uma e outra, já que a primeira é prisioneira de uma tradição, enquanto que a outra é prisioneira do modelo ocidental de beleza. “Para a esperta Majida, a questão é como integrar e não como excluir, diz ela.” Já estamos num país laico, proibir é um absurdo, não vai resolver o problema. Ao contrário, vai radicalizar a situação e criar um conflito maior, em vez de um diálogo.“

O que essa ousada artista denuncia e nos deixa como provocação, é exatamente pensar que lugares são esses que podem ser ocupados pelas mulheres nas políticas contemporâneas. Estarão elas em pleno exercício de sua liberdade e potência, ou continuarão sendo uma mera costela de Adão?

Quem dera seguissem a escrita de Ana Cristina Cesar:
“O céu, quando entra em mim, o vento não faz voar, esses papéis.”(***)


*Psicanalista - Membro Titular da Formação Freudiana
**Negri, Antonio- A Anomalia Selvagem- Poder e Potência em Spinoza- Ed 34, 1993
***Cesar, Ana Cristina- Inéditos e Dispersos, Ed. Brasiliense, 1985.

05 maio 2010

AMIGO, QUE PAPO É ESSE?

Indagado sobre quais seriam os limites do amor e do sexo, ponderei: será que eu sei? A pessoa que indaga se diz carente, está descasada há anos, não consegue um namorado firme e quer saber se é possível ir para a cama com um amigo que quer “comê-la” a todo custo e ainda assim continuar amigo. Investiga se isso é possível, ou se só é possível fazer isso com um colega, que considera uma categoria menor, mais distante, ou com um amante/namorado, cuja implicação é óbvia.

O que sabemos nós sobre amizade, coleguismo e amor quando o interesse pelo sexo entra justamente para dar conta de uma carência? Parece que essa distinção nos impede de ver o que é comestível ou não. Todos são comestíveis e se comidos não há porque mudar a categoria, o que até pode acontecer. É que quando o comer confunde a cabeça do comedor e/ou do comido, este corre perigo de naufragar.

Só para lembrar o grande poeta português Fernando Pessoa “navegar é preciso, viver não é preciso”. Isso define a precisão de métodos e instrumentos para navegar, enquanto que para viver basta viver. Ainda com esse mesmo autor, no Poema do amigo aprendiz

Quero ser o teu amigo. Nem demais e nem de menos.
Nem tão longe e nem tão perto.
Na medida mais precisa que eu puder.
Mas amar-te sem medida e ficar na tua vida,
Da maneira mais discreta que eu souber.
Sem tirar-te a liberdade, sem jamais te sufocar.
Sem forçar tua vontade.
Sem falar, quando for hora de calar.
E sem calar, quando for hora de falar.
Nem ausente, nem presente por demais.
Simplesmente, calmamente, ser-te paz.
É bonito ser amigo, mas confesso é tão difícil aprender!
E por isso eu te suplico paciência.
Vou encher este teu rosto de lembranças,
Dá-me tempo, de acertar nossas distâncias…

Às vezes sou obrigado a me render a Roberto Carlos, embora não o aprecie a miúde, e assentar o poema de Erasmo Carlos, Amada amante

(…) faz da vida um instante
ser demais para nós dois
esse amor sem preconceito
sem saber o que é direito
faz a suas próprias leis
que flutua no meu leito
que explode no meu peito
e supera o que já fez (…)

Talvez por tudo isso fique tão confuso ser amigo, colega ou amante e depois de uma relação sexual reconhecer-se como tal.

Ainda bem que somos humanos para compreender o amor como forma de aproximação entre pessoas e a sua capacidade lúdica de trocas e prazeres. Uma atividade pulsional que ultrapassa uma simples união para procriação e perpetuação da espécie.

O artigo: “A Linguagem Interminável dos Amores”, da psicanalista Olivia Bittencourt Valdivia apresenta uma indicação da relação entre o amor e a sexualidade, numa visão psicanalítica e também que "...um Freud humano e apaixonado nos deixa os mapas de sua exploração." Este em seu percurso amoroso e sensual e autorizado por uma longa experiência clínica, há muito se interrogava sobre a vida amorosa dos homens.

Em fins do século XIX tentando entender a histérica percebeu que talvez ela quisesse dizer alguma coisa com o seu corpo. Alguma coisa que não conseguia dizer com palavras. E a histérica falou do sexo, do amor, do ódio e da culpa. Freud, inaugurou o lugar da Psicanálise, que é na verdade o lugar de uma relação de amor. Nesta relação a libido refaz seus caminhos até a possibilidade de uma relação de amor com o analista, que abre esta possibilidade para a vida do analisando. Freud revolucionou a compreensão da noção de sexualidade colocando o sexual no registro do pulsional, estabelecendo a ideia de uma impossibilidade de satisfação, só encontrada através da fantasia.”


Para o filosofo, “Só sei que nada sei” não é a divisa da filosofia e muito menos um apelo à ignorância, mas uma provocação àqueles que se apresentam como sábios e detentores das verdades. Na boca de Sócrates, “só sei que nada sei” é a expressão da ironia, essa arma filosófica apontada ao ridículo dos sábios fechados em si mesmos, prepotentes, pomposos.

Ontem como hoje, são muitos esses sábios que se tomam a sério e querem que os tomemos também, mas que são incapazes de partilhar conosco os segredos desses saberes que dizem possuir.

Portanto amigo, que papo é esse?

10 setembro 2009

FREUD EXPLICA RESPONDE – O amigo e a onça

Marcondes Carlos pergunta

Sou estudante de Psicologia e gostaria de saber o que Fred faria nesse caso.

Você está com um amigo e só os mesmos estão em uma ilha deserta, além de vocês dois existe uma onça. Com isso fizemos um buraco para que a onça pudesse cair só que ao invés da mesma cair, quem caiu foi o meu amigo. O que irei fazer para capturar a onça e salvar meu amigo?

Gostaria muito de sua opinião.

Obrigado desde já.

Freud explica responde

Corrija-me se eu estiver errado. Você gostaria de saber o que Fre(u)d(?) explicaria?

Você misturou vários pronomes, mas quero crer que se trata da hipótese de alguém ter o seu amigo caído num buraco escavado para capturar uma onça. Você se indaga sobre o que você vai fazer para salvar o amigo e capturar a onça, mas não nos dá a menor ideia do que pode ser pensado, nem dos sentimentos que perpassam essa situação. Portanto não sei se cabe uma explicação freudiana, mas vamos lá.

Ao escrever O mal-estar na civilização (1930), Freud apontou três grandes males que afetam o homem. As forças da natureza e as doenças (que não vamos tratar aqui) e ainda a sua relação com o outro. Essa terceira foi apontada por ele como a mais terrível força capaz de aniquilar a humanidade.

Desde os primórdios da civilização o homem quis ter ou ser o que o outro tem ou é, seja no campo afetivo quanto material. Estabeleceu relações de poder, daí as formações das guerras, das traições e outras manifestações que põem em risco a estabilidade possível entre as pessoas. As relações de amizade sugerem uma posição contrária a esse pressuposto. Daí o direito e a moral religiosa criarem normas para as condutas dos homens.

Chaim Samuel Katz pensa a amizade como uma possibilidade de diferenciação que se oferece a si e ao outro. Ele se baseia em Freud para explicar como as mais fortes relações familiares existentes, são as que se fazem em torno da autoridade e da função paterna. O grupo familiar estabelece como cada indivíduo conhece seu lugar na estrutura de parentesco. Antes mesmo de nascer, já existem posições e escolhas determinadas, ao menos de filho. Amor e ódio ocupam lugares com figuras e objetos determinados.

Para ele, o que se conhece como família se funda nas relações de aliança, filiação e consanguinidade. Funciona como uma rede. Rede essa que obrigaria os afetos e as suas ligações. Ela não depende do nascimento imediato e fisiológico. Contudo é permanente, organizando-se em torno das relações familiares. Para a psicanálise, os afetos provêem destas relações, que se organizam em torno de um evento não-sensível.

Para nós humanos, de família burguesa, humilde ou asilar, não importa, já nascemos também com uma crença em Deus; uma religião; uma profissão, um sexo – que não irá corresponder necessariamente com o biológico; um time para torcer; uma circuncisão e/ou um bar mitzvah; uma primeira comunhão. Em algumas regiões da Índia, as meninas já nascem com marido indicado. Uma escolha ulterior muitas vezes se torna difícil, graças aos reforços como uma foto da criança com a camisa do time do pai, uma foto do batismo com seus padrinhos, ou do bar mitzvah, etc. O pior reforço talvez seja uma reprovação como: “não faça isso que papai-do-céu-castiga”. Obriga a criança a uma crença feita pelo medo. Talvez essa forma de “não-escolha” também influencie na relação de amizade.

Estão na linguagem e no dito popular, as formas mais diferenciadas de se organizar e sentir. Os apelidos mudam, de acordo com as relações afetivas, de poder e de interesse. Formam-se novas configurações familiares, novas configurações de amizade. Enquanto os irmãos e tias familiares serão sempre os mesmos na estrutura de parentesco, por mais que os abandonemos e recusemos. É preciso considerar novas ordens de famílias, onde um segundo casamento impõe novos manos e tias, por exemplo. Os casamentos entre homossexuais impõem dois pais masculinos ou duas mães femininas, mas também "exigem" uma hierarquia de relações e afetos que tende a se perpetuar.

Não se pode perder de vista que qualquer laço libidinal, por mais distanciado e respeitoso que possa ser, quer possuir e anexar o próximo e anular seu estatuto atual. Contudo, o amigo pretende criar e transformar a si próprio. A amizade precisa suportar diferenças extremas, o inusitado que se apresenta como adversidade. Não espera que só venham formas de um único amor para unir os amigos. As amizades são feitas de um material mais duro, de diferenças e de dissensões.

Num poema eu coloquei: Os ingredientes principais são: / pessoas, diferenças, paixão e humor. / Paciência, tolerância, bom senso. / Tempo, carinho e dinheiro entram também. // O modo de preparar é muito simples. / Só exige atenção e generosidade. / Dispensa preconceito e racismo, / mas deve ser praticada desde a infância. São, na verdade, apenas alguns dos “ingredientes” necessários para se fazer uma amizade, que eu destacaria aqui.

Contudo a sua questão propõe uma situação na qual os dois amigos estão isolados e em perigo frente à ameaça da onça e, portanto da morte. Numa aliança cavam um buraco a fim de aprisionar a onça. Com a queda do amigo nesse buraco nova configuração se faz necessária. Novos agenciamentos se impõem. Quem está fora do buraco ficou mais vulnerável, pois ficou sozinho. Quem caiu no buraco está em situação ainda pior. Por ser um limite, o buraco impõe privações de toda ordem e pior ainda se a onça também cai ali. O que é de se esperar.

Ao pensar numa solução ideal, o amigo iria procurar retirar o amigo, até porque fortaleceria a sua própria defesa. Mas há também a pulsão de sobrevivência que é instintual e forçará ao que está fora do buraco a criar outra solução que pode não incluir o amigo perdido.

Situações como essa nos acontecem muitas vezes no cotidiano. O buraco surge como metáfora de uma situação de solução, digamos, “impossível”. Ao mudar os planos de ação muitas vezes as amizades são esquecidas ou quebradas para atender a um novo “plano de sobrevivência”.

Saint-Exupéry em “Terre des homme” (Terra dos homens), inverteu essa questão justo quando se encontrou só e perdido no deserto em Dacar, após um desastre de avião. Ele criou um meio de sobrevivência quando estabeleceu: “tenho que sobreviver, porque sei que meus amigos esperam isso de mim”.

O pernambucano Péricles Andrade Maranhão ficou conhecido com o personagem “o amigo da onça” criado a partir da anedota em que dois caçadores conversavam sobre um modo de sobreviver diante da ameaça de uma onça. Sempre que um oferecia uma solução, o outro apresentava uma nova ameaça. Finalmente ele diz: - Mas, afinal, você é meu amigo ou amigo da onça?

Péricles Maranhão viveu com todas as possibilidades do seu tempo e o que o sucesso lhe ofereceu, além de estar longe da família e numa cidade como o Rio de Janeiro. Logo desenvolveu uma personalidade instável, irritadiça e se tornou um boêmio inveterado. Vivia próximo da embriagues. O seu personagem tornou-se maior do que ele. Então escolheu morrer de forma trágica. Na noite de 31 de dezembro de 1961. Vestido como o seu personagem escreveu dois bilhetes. Fechou todas as portas do seu apartamento, ligou o gás e foi deitar-se no sofá. Num ele reclamava da solidão. E como um último toque de humor, foi colocar o outro na porta, pelo lado de fora, escrito à mão: "Não risquem fósforos".

01 setembro 2009

IDENTIDADE PERDIDA

José Américo Rodrigues Palhares, aprendeu a dirigir caminhão quando ainda era muito pequeno. Seu tio tinha um caminhão de entregas e vez por outra o levava a passear colocando-o no colo. A paixão pelo volante e principalmente por caminhões vem desta época e influenciou na escolha da sua profissão.

Palhares mora numa pacata cidade do interior vive em errância, rodando por todo o país, levando e trazendo mercadorias pequenas ou grandes. Cada viagem dura cerca de um mês, entre ida e volta. Tudo é sempre programado. Toda vez que sai para uma destas viagens, Anunciata de Jesus, sua mulher, lhe prepara um farnel que dá para uns dois dias. Mas acostumado como está com a estrada, não se intimida se dorme, ou se come mal. Não é de beber pinga em serviço, mas gosta mesmo é de tomar uma “rasteirinha” com torresmo e farofa antes do almoço.

- É a “abrideira”! É para abrir o apetite - ele sempre fala assim.


Uma vez, entre o intervalo de uma viagem e outra, ele saiu com os amigos para festejar a vitória do seu time de futebol - É vascaíno doente. Era tanta cerveja e churrasco que a farra foi até tarde da noite.

Quando chegou em casa notou que perdeu todos os documentos. Não soube explicar depois, como eles foram achados espalhados em lugares diferentes e distantes uns dos outros. Todos os documentos foram recuperados, até mesmo um "santinho" de São Cristóvão que, às vezes ele usava preso no guarda sol do seu caminhão com elástico. Só não achou a sua carteira de identidade. Ele ainda esperou um mês para ver se ela aparecia, como não apareceu, tirou outra. Vaidoso, ele aproveitou um dia de festa da padroeira na igreja, para tirar uma foto colorida para a sua nova carteira.

Durante uma pequena viagem, sentindo muito calor, Palhares resolveu parar em um bar de beira de estrada e pediu uma garrafa de água mineral, enquanto era servido, puxou o lenço para enxugar a testa de suor. Percebeu uma carteira de identidade pendurada no vidro do caixa que parecia com a sua perdida. Perguntou:

- Moço, posso ver este documento?

- Claro, aqui está. É sua? - perguntou sem verificar.

- É sim, eu perdi faz muito tempo num lugar bem longe. Não sei como ela veio parar aqui.

- Alguém entregou. Se for sua, pode levar - respondeu o caixa.

A partir deste momento, uma coisa muito estranha invadiu-lhe a alma. Podia-se dizer que ficou muito feliz por ter encontrado a sua carteira, um pouco mais estragada, é verdade, mas era mesmo sua. Agora possuía duas carteiras de identidade. Estava perplexo. Comparou seu retrato nas duas carteiras. Eram bem diferentes. Agora ele tinha uma cara mais séria do que quando era mais jovem.

Quando chegou em casa, a primeira coisa que fez foi mostrar para Anunciata o seu achado.

- Vamos guardar esta carteira nova, já que não vou mais precisar dela - colocou-a numa gaveta da cômoda do seu quarto.

- É, quem sabe você ainda vai precisar dela um dia? - acrescentou Anunciata.

“E o pior é que agora eu sou dois”, pensou Palhares sem ter coragem de dizer.

Sua vida transcorria normalmente, até que um dia, fez uma vigem junto com outros companheiros em comboio e já passava uma semana, quando de repente, ele parou o seu caminhão no meio da estrada. Seus companheiros de viagem, preocupados com aquela parada brusca e sem motivo, correram em seu socorro. Encontraram-no parado com o olhar fixo, perdido em um ponto distante.

- O que aconteceu, homem? Responda! - insistiam os colegas, sem obter qualquer resposta.

Preocupados, levaram-no a um hospital na cidade mais próxima. Os médicos que o examinaram não encontraram nada que justificasse aquele silêncio em que Palhares se encontrava imerso, sem responder a qualquer pergunta nem sequer dizer o seu próprio nome.

Foi levado de volta para sua casa e lá continuou mudo; não falou com Anunciata nem com seus três filhos, ainda pequenos. Os médicos e os amigos ficaram atônitos, sem entender o que estava lhe acontecendo.

Colocado em sua cama, dormiu profundamente. No dia seguinte quando acordou, viu o seu rosto projetado no espelho que ficava estrategicamente posto em frente à sua cama, deu um grito alucinante, pondo-se de pé imediatamente parando-se diante da cômoda. Olhou para a gaveta da cômoda e rapidamente saiu do quarto. Durante um bom tempo não voltou lá nem saiu de casa.

A partir daquele dia, Palhares passou a dormir na sala e quando precisava de alguma coisa que estivesse no quarto, pedia, com gestos, para alguém ir lá buscar. Para ele, havia “um outro” ali. Mandou até tirar o espelho do banheiro e passava o dia inteiro perambulando pela casa, em silêncio. Abria os armários e gavetas como se estivesse procurando alguma coisa. Anunciata ficava irritada com ele, pois não estava acostumada com a sua presença em casa por muito tempo, nem com aquela situação. Ainda por cima, ele desarrumava tudo na casa. Vivia sempre com a mesma roupa, barba por fazer e aquele olhar perdido. Mal comia e não tomava banho. Todos já estavam à beira de um ataque dos nervos.

À noite, na hora de dormir, quando via sua mulher ir para o quarto, ele era tentado a imaginar que ela iria dormir com outro homem. Vez por outra ele balbuciava algumas palavras desconexas. Vivia na janela olhando um ponto perdido no espaço. Um gesto mais brusco ou agressivo que ele tivesse, parecia que o tiraria daquele estado. Nada acontecia. Não chegava perto da janela ao anoitecer. Desviava o olhar de qualquer superfície que pudesse refletir a sua imagem ou mesmo uma sombra. Não falava com ninguém, nem com os familiares, nem com os médicos que o atendiam em sua casa.

Todos os dias, pela manhã, quando sua mulher saía do quarto, ele já estava lá, plantado à soleira da porta. O seu olhar era de dar medo. Seguia-a durante todo tempo e sempre em silêncio.

Esta situação insuportável já durava pouco mais de um ano que viviam da ajuda dos seus colegas. Anunciata desconfiava que ele tivesse ficado assim porque encontrou a carteira de identidade. Possuía agora duas carteiras. Ela não conseguia falar sobre isso com ninguém, ou porque ele a impedia com um “psssiiitt”, ou porque ela mesma não tinha muita convicção dessa idéia, aquilo era muito estranho para ela também.

Ultimamente, porém, ele já se asseava mais. Tomava banho, mas não fazia a barba e saía para pequenos passeios perto de casa. Sempre que cruzava com alguém que lhe dirigisse a palavra ou o olhar, tirava a sua velha carteira de identidade do bolso e mostrava, como um árbitro de futebol exibindo um cartão de advertência.

Um belo dia, ele passeava acompanhado da esposa quando, sem se dar conta, foi em direção a uma vitrine vendo a imagem de alguém que lhe era muito familiar se aproximando dele. Quando ele já estava bem perto da vitrine, olhou fixamente aqueles olhos que também o olhava. Ficou ali por alguns instantes, parado, com olhar perdido para aquela figura, quando, de repente, deu um passo para trás e com um grito de horror caiu desmaiado ali mesmo na rua, sendo acudido por sua mulher. Foi levado para casa e logo chamaram o médico que o atendeu no primeiro episódio. Este acalmou os familiares, pois não havia necessidade de ser internado.

Anunciata deu-lhe um banho, fez a sua barba e colocou-o na sua cama onde logo adormeceu. Pondo-se à sua cabeceira rezou o terço até a noitinha. Sem saber porque, pegou as duas carteiras de identidade. Alguma coisa esquisita lhe dizia que ela deveria destruir uma delas. Olhava as carteiras e se perguntava: “qual?”. A mais nova talvez, pensava. Não, essa não, afinal de contas ele não a vê desde que a colocou na gaveta. A velha talvez seja melhor, já está toda quebrada mesmo. Sem perceber já estava com a tesoura na mão picotando essa carteira.

Foi tomada por um susto enorme diante daquela atitude e entrou em pânico. “E agora, o que é que eu vou fazer com estes pedacinhos?”. Pensou: "se jogar fora, talvez seja pior, ele não iria (irá) saber o que aconteceu com ela", achou melhor guardar na gaveta junto com a outra. Foi o que ela fez.

A noite transcorreu sem novidades. No dia seguinte, bem cedo, Anunciata já havia se levantado quando viu Palhares abrindo os olhos. Sua aparência era de calma e serenidade, já não tinha mais aquele olhar desconfiado e assustador de antes. Vendo a sua imagem no espelho a frente da cama, sem dizer nada, levantou-se indo até a gaveta da cômoda, abriu-a e deparou-se com as duas carteiras juntas, uma inteira e a outra picotada, pegando-as sem entender o que havia acontecido.

Olhou o retrato da carteira nova. Olhou-se de novo no espelho, deixou os pedaços picotados na gaveta. Calmamente foi ao armário, pegou uma mala, arrumou nela um punhado de roupas, sob o olhar assustado de Anunciata, que apenas observava.

Pegou a sua carteira de identidade, colocou junto com os outros documentos no bolso, dizendo:
- Acabou. Agora tudo vai ficar bem!

Neste mesmo dia, ele convenceu a mulher a preparar um lanche e saíram juntos com os filhos, num passeio de caminhão. No meio da viagem pegou o filho mais velho e levou-o ao colo.

-Está na hora de você começar a aprender a dirigir, um dia você terá que fazer isto.

Na volta, deixou a mulher e os filhos em casa. Sem dizer uma só palavra saiu.