20 maio 2010

FEMINILIDADE: UMA QUESTÃO DE PODER OU DE POTÊNCIA?

Por Angela Villela*


Para Dóris, amiga eterna,
pura inspiração de potência.

Num ano eleitoral em que temos duas mulheres candidatas ao posto máximo de poder, parece oportuna uma reflexão sobre essa tão vital relação. Até porque, por outro lado, a força do voto feminino terá uma representação de cerca de 30,3% do eleitorado brasileiro, segundo pesquisas recentes. Entretanto, o que pode ser interpretado como uma grande vitória, após o longo processo feminista de dissolução de hierarquias que sempre caracterizou a construção das sociedades, paradoxalmente, pode vir a ser, também, um retrocesso desastroso. Se não refletirmos, de antemão, sobre as condições e possibilidades do que representa essa eleição e essa relação, estaremos condenados a abrir mão das transformações e práticas políticas significativas, advindas de tantas lutas. Serão desperdiçadas inúmeras conquistas que aconteceram nas últimas décadas, graças aos deslocamentos de posições e movimentos produzidos pelo feminismo. Pois a política, que sempre teve seus conflitos e antagonismos performatizados por sujeitos com classe, raça, sexualidade e gênero diferenciados, na verdade, paralelamente, foi regida em sua maior parte por um único signo, o da masculinidade. Agora, uma rara oportunidade surge, não no que diz respeito especificamente ao gênero, um homem ou uma mulher, mas sim no que se refere à criação de uma outra mentalidade. E o que se quer dizer com isso? É claro que não há, aqui, a possibilidade de uma análise histórica profunda de como foram demarcadas outras territorialidades, assim como é evidente que, para que isso acontecesse, ocorreram radicalizações, exageros e equívocos, partes inevitáveis das tentativas de superação de um lugar de menos-valia e de inferioridade, que nunca deixaram de fazer parte da longa jornada feminista. Na ânsia de igualdade de direitos, muitas mulheres se perderam de sua feminilidade e da sua real potência, na medida em que estabeleceram semelhanças com o discurso masculino em relação ao poder, tornando-se extremamente fálicas. Se por vários aspectos tivemos evoluções, por outros temos sido espectadores de degradações. Ao invés de virarem sujeitos de seu próprio discurso, certas mulheres caíram no engodo de permanecerem, apenas, nos velhos lugares de objetos de consumo. Silicones e peitos turbinados viraram sinônimos de “segurança”, o que diga -se de passagem, não só empobreceu as relações afetivas, como, também, produziu essa distorção entre poder e potência, o que acabou causando um distanciamento incomensurável, um abismo, entre mulheres e homens. Nessas tentativas, elas se perderam de características fundamentais que deixaram um vazio, não somente em suas identidades, assim como em suas trocas afetivas, sócio- políticas e existenciais. Sem falar no desejo impossível de igualdade, já que este seria uma injustiça para com os diferentes. Isso fez com que ganhos relativos à equivalência realmente se concretizassem.

Essa a questão que está posta em jogo, através das candidaturas de Dilma Roussef e Marina Silva. A velha pergunta que Freud não conseguiu responder - “Afinal, o que quer uma mulher?- pode ser aqui atualizada: “Afinal, o que querem Dilma e Marina com o poder?”Repetirão o mesmo ou vem para assumir a diferença? Conseguirão escapar das artimanhas e seduções tão fortemente demarcadas pelas características masculinas nos lugares de poder? Serão elas capazes de capitalizar a seu favor isso que é a principal característica da feminilidade, ou seja, a criação de um novo lugar, onde o sensível prevaleça? A presença feminina na presidência trará um outro olhar sobre a nossa realidade sócio-política? Que ética prevalecerá? Conseguirão elas serem artistas no mais puro sentido da Arte, da criação, ou continuaremos apenas a ver a prevalência do capital sobre os valores?

Refletir sobre essas questões é fundamental, inclusive, por vivermos em tempos de um certo autoritarismo, onde um presidente sustentado por alto índice de aprovação, se apropria do imaginário popular para criar um culto de que sua candidata “é o cara”, o que nos leva a supor um tipo de unidade que caracteriza Dilma Roussef como uma extensão (que ela endossa). Podemos nos arriscar a dizer que o presidente Lula, em sua ânsia de continuísmo, ignora e apaga a diferença sexual, pois estaria referido a um modelo que nos oferece um sujeito ou agente pronto e acabado, enquanto que o significante “mulher” nos remete a uma multiplicidade de lugares, a uma construção, a uma singularidade que se apresenta, não se representa.

Assim sendo, parece decisivo questionar as garantias dadas a priori, face à tarefa tão significativa de democratização radical que essa eleição representa. Derrida dizia que a grande vitória política será quando houver uma desconstrução dos registros vigentes. E isso não diz respeito somente ao gênero, masculino e feminino, mas sim a uma mudança de parâmetros, uma verdadeira revolução do pensamento na construção de outra ordem de conhecimento. Ao invés de uma posição confrontativa, a negociação de território, a flexibilidade, a delicadeza, uma diferença sutil que estabeleça um novo interesse para o mercado, através da percepção e da sensibilidade. Um outro tipo de força como instrumento de poder, uma outra estética. É isso que significa “o exercício da potência”, radicalmente oposto ao “exercício de poder”. Potência nos sentido de forças que são inseparáveis de uma espontaneidade e de uma produtividade, forças que são elementos, inclusive, de socialização.No sentido spinozista, “forças que se definem por relação a uma infinidade de partes que compõem cada corpo e que já o caracterizam como um multitudo .O ser que se constrói em Spinoza é uma realidade explosiva”(**)

Ao invés de nomearmos essa possibilidade como um tipo de política pós feminista, o que traz a idéia de algo resolvido, podemos caracterizar essa oportunidade como um “momento do feminismo”, como bem diz Heloísa Buarque de Hollanda. Ao longo da história, inúmeras mulheres foram líderes políticas. Elizabeth I, por exemplo, defendeu arduamente a Inglaterra contra a Armada Espanhola e transformou Londres numa metrópole cultural, enquanto que Catarina, a Grande, influenciada pelos pensadores do Iluminismo, revelou-se uma grande reformadora, ao modernizar a administração pública e o código penal da Rússia. Uma frase célebre, porém, de Elizabeth I: “Eu sei que tenho um corpo frágil de mulher, mas tenho o coração e a coragem de um rei” demonstra, que a ambição que caracterizou a ocupação dos lugares de poder por essas e outras mulheres, foi atravessada, quase sempre, pelas referências masculinas, com raras exceções. Margaret Thatcher, já na década de 70, reforça essa lógica ao enaltecer as vantagens da liderança feminina, afirmando que: “Se precisarem de alguém que profira discursos, peguem um homem. Se houver um problema para ser resolvido, é melhor que perguntem a uma mulher.”

Não interessa a incisão histórica que essas mulheres tiveram. O paradoxal é que, em positivo ou em negativo, elas demonstraram uma força política incomum, num universo eminentemente regido pelos homens, por manifestarem as contradições e expressarem em corpo e obra o luminoso e o obscuro, a fragilidade e a coragem, ou seja, as incógnitas profundas que habitam o humano, independente do gênero.

Se trouxermos isso para a atualidade, temos um bom exemplo das características da feminilidade que apontávamos anteriormente e que tem a ver com a abertura do pensamento e não de sua radicalização. Há poucos dias atrás, uma artista franco-marroquina, Majida Khattari, questionou com muito humor a questão da burca que invade a cena cultural francesa e os clichês de um lado e de outro. Num desfile- performance , ela colocou na passarela uma mulher totalmente envolta num véu, enquanto que na contramão, caminhava uma outra modelo praticamente nua, tentando equilibrar-se num salto altíssimo. Para ela não há diferença entre uma e outra, já que a primeira é prisioneira de uma tradição, enquanto que a outra é prisioneira do modelo ocidental de beleza. “Para a esperta Majida, a questão é como integrar e não como excluir, diz ela.” Já estamos num país laico, proibir é um absurdo, não vai resolver o problema. Ao contrário, vai radicalizar a situação e criar um conflito maior, em vez de um diálogo.“

O que essa ousada artista denuncia e nos deixa como provocação, é exatamente pensar que lugares são esses que podem ser ocupados pelas mulheres nas políticas contemporâneas. Estarão elas em pleno exercício de sua liberdade e potência, ou continuarão sendo uma mera costela de Adão?

Quem dera seguissem a escrita de Ana Cristina Cesar:
“O céu, quando entra em mim, o vento não faz voar, esses papéis.”(***)


*Psicanalista - Membro Titular da Formação Freudiana
**Negri, Antonio- A Anomalia Selvagem- Poder e Potência em Spinoza- Ed 34, 1993
***Cesar, Ana Cristina- Inéditos e Dispersos, Ed. Brasiliense, 1985.

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