10 setembro 2009

FREUD EXPLICA RESPONDE – O amigo e a onça

Marcondes Carlos pergunta

Sou estudante de Psicologia e gostaria de saber o que Fred faria nesse caso.

Você está com um amigo e só os mesmos estão em uma ilha deserta, além de vocês dois existe uma onça. Com isso fizemos um buraco para que a onça pudesse cair só que ao invés da mesma cair, quem caiu foi o meu amigo. O que irei fazer para capturar a onça e salvar meu amigo?

Gostaria muito de sua opinião.

Obrigado desde já.

Freud explica responde

Corrija-me se eu estiver errado. Você gostaria de saber o que Fre(u)d(?) explicaria?

Você misturou vários pronomes, mas quero crer que se trata da hipótese de alguém ter o seu amigo caído num buraco escavado para capturar uma onça. Você se indaga sobre o que você vai fazer para salvar o amigo e capturar a onça, mas não nos dá a menor ideia do que pode ser pensado, nem dos sentimentos que perpassam essa situação. Portanto não sei se cabe uma explicação freudiana, mas vamos lá.

Ao escrever O mal-estar na civilização (1930), Freud apontou três grandes males que afetam o homem. As forças da natureza e as doenças (que não vamos tratar aqui) e ainda a sua relação com o outro. Essa terceira foi apontada por ele como a mais terrível força capaz de aniquilar a humanidade.

Desde os primórdios da civilização o homem quis ter ou ser o que o outro tem ou é, seja no campo afetivo quanto material. Estabeleceu relações de poder, daí as formações das guerras, das traições e outras manifestações que põem em risco a estabilidade possível entre as pessoas. As relações de amizade sugerem uma posição contrária a esse pressuposto. Daí o direito e a moral religiosa criarem normas para as condutas dos homens.

Chaim Samuel Katz pensa a amizade como uma possibilidade de diferenciação que se oferece a si e ao outro. Ele se baseia em Freud para explicar como as mais fortes relações familiares existentes, são as que se fazem em torno da autoridade e da função paterna. O grupo familiar estabelece como cada indivíduo conhece seu lugar na estrutura de parentesco. Antes mesmo de nascer, já existem posições e escolhas determinadas, ao menos de filho. Amor e ódio ocupam lugares com figuras e objetos determinados.

Para ele, o que se conhece como família se funda nas relações de aliança, filiação e consanguinidade. Funciona como uma rede. Rede essa que obrigaria os afetos e as suas ligações. Ela não depende do nascimento imediato e fisiológico. Contudo é permanente, organizando-se em torno das relações familiares. Para a psicanálise, os afetos provêem destas relações, que se organizam em torno de um evento não-sensível.

Para nós humanos, de família burguesa, humilde ou asilar, não importa, já nascemos também com uma crença em Deus; uma religião; uma profissão, um sexo – que não irá corresponder necessariamente com o biológico; um time para torcer; uma circuncisão e/ou um bar mitzvah; uma primeira comunhão. Em algumas regiões da Índia, as meninas já nascem com marido indicado. Uma escolha ulterior muitas vezes se torna difícil, graças aos reforços como uma foto da criança com a camisa do time do pai, uma foto do batismo com seus padrinhos, ou do bar mitzvah, etc. O pior reforço talvez seja uma reprovação como: “não faça isso que papai-do-céu-castiga”. Obriga a criança a uma crença feita pelo medo. Talvez essa forma de “não-escolha” também influencie na relação de amizade.

Estão na linguagem e no dito popular, as formas mais diferenciadas de se organizar e sentir. Os apelidos mudam, de acordo com as relações afetivas, de poder e de interesse. Formam-se novas configurações familiares, novas configurações de amizade. Enquanto os irmãos e tias familiares serão sempre os mesmos na estrutura de parentesco, por mais que os abandonemos e recusemos. É preciso considerar novas ordens de famílias, onde um segundo casamento impõe novos manos e tias, por exemplo. Os casamentos entre homossexuais impõem dois pais masculinos ou duas mães femininas, mas também "exigem" uma hierarquia de relações e afetos que tende a se perpetuar.

Não se pode perder de vista que qualquer laço libidinal, por mais distanciado e respeitoso que possa ser, quer possuir e anexar o próximo e anular seu estatuto atual. Contudo, o amigo pretende criar e transformar a si próprio. A amizade precisa suportar diferenças extremas, o inusitado que se apresenta como adversidade. Não espera que só venham formas de um único amor para unir os amigos. As amizades são feitas de um material mais duro, de diferenças e de dissensões.

Num poema eu coloquei: Os ingredientes principais são: / pessoas, diferenças, paixão e humor. / Paciência, tolerância, bom senso. / Tempo, carinho e dinheiro entram também. // O modo de preparar é muito simples. / Só exige atenção e generosidade. / Dispensa preconceito e racismo, / mas deve ser praticada desde a infância. São, na verdade, apenas alguns dos “ingredientes” necessários para se fazer uma amizade, que eu destacaria aqui.

Contudo a sua questão propõe uma situação na qual os dois amigos estão isolados e em perigo frente à ameaça da onça e, portanto da morte. Numa aliança cavam um buraco a fim de aprisionar a onça. Com a queda do amigo nesse buraco nova configuração se faz necessária. Novos agenciamentos se impõem. Quem está fora do buraco ficou mais vulnerável, pois ficou sozinho. Quem caiu no buraco está em situação ainda pior. Por ser um limite, o buraco impõe privações de toda ordem e pior ainda se a onça também cai ali. O que é de se esperar.

Ao pensar numa solução ideal, o amigo iria procurar retirar o amigo, até porque fortaleceria a sua própria defesa. Mas há também a pulsão de sobrevivência que é instintual e forçará ao que está fora do buraco a criar outra solução que pode não incluir o amigo perdido.

Situações como essa nos acontecem muitas vezes no cotidiano. O buraco surge como metáfora de uma situação de solução, digamos, “impossível”. Ao mudar os planos de ação muitas vezes as amizades são esquecidas ou quebradas para atender a um novo “plano de sobrevivência”.

Saint-Exupéry em “Terre des homme” (Terra dos homens), inverteu essa questão justo quando se encontrou só e perdido no deserto em Dacar, após um desastre de avião. Ele criou um meio de sobrevivência quando estabeleceu: “tenho que sobreviver, porque sei que meus amigos esperam isso de mim”.

O pernambucano Péricles Andrade Maranhão ficou conhecido com o personagem “o amigo da onça” criado a partir da anedota em que dois caçadores conversavam sobre um modo de sobreviver diante da ameaça de uma onça. Sempre que um oferecia uma solução, o outro apresentava uma nova ameaça. Finalmente ele diz: - Mas, afinal, você é meu amigo ou amigo da onça?

Péricles Maranhão viveu com todas as possibilidades do seu tempo e o que o sucesso lhe ofereceu, além de estar longe da família e numa cidade como o Rio de Janeiro. Logo desenvolveu uma personalidade instável, irritadiça e se tornou um boêmio inveterado. Vivia próximo da embriagues. O seu personagem tornou-se maior do que ele. Então escolheu morrer de forma trágica. Na noite de 31 de dezembro de 1961. Vestido como o seu personagem escreveu dois bilhetes. Fechou todas as portas do seu apartamento, ligou o gás e foi deitar-se no sofá. Num ele reclamava da solidão. E como um último toque de humor, foi colocar o outro na porta, pelo lado de fora, escrito à mão: "Não risquem fósforos".

2 comentários:

Anônimo disse...

Olha, Rogério, impressionante como você conseguiu construir um belo texto a partir desse estranho email.

Boa a historia do Pericles.

Abraco
Ariel

PensarFalar disse...

De fato! Pensei em parar de ler as primeiras linhas, mas ainda bem que me detive!