02 maio 2011

UMA EXPERIENCIA ARTISTICA


A arte tem sido, ao longo dos tempos, um campo privilegiado de articulação, conexão e síntese. Um poderoso instrumento de mutação cultural e social, que invade a vida e transforma a realidade, na medida em que expande pensamentos, que, por sua vez, criam novas formas de existência.

O cinema, por exemplo, ao despertar no espectador um processo afetivo de participação, desencadeia uma série de emoções e sensações que lhe dão um caráter de credibilidade que outras formas de arte, muitas vezes, não suscitam de imediato. O homem comum, ao se ver iluminado em uma experiência projetiva, se sente excepcional em sua insignificância e mergulha num universo de sonho e magia, onde uma linguagem diferente o enuncia como um “outro”. Vista sob este viés, a arte é um testemunho do inconsciente e o domínio fílmico,em particular, é aquele que, ao criar uma impressão de realidade, automaticamente descentra o sujeito das imagens fixas que tem de si mesmo, viabilizando a construção de outras. Ele se desdobra, se duplica. Cada um vê o seu filme, a partir de vivências particulares,dado o caráter totalmente subjetivo da experiência. Isso nos leva a pensar se essa não seria, também, uma das principais características do processo analítico. Vemo-nos como um e descobrimos vários.

A discussão sobre os atravessamentos possíveis entre o sonho e o cinema, acima de tudo, possui o mérito de ressaltar aspectos importantes no tocante à discussão sobre o estatuto do imaginário como potência de criação, dentre outros temas que concernem à teoria cinematográfica/prática psicanalítica - e não apenas como engodo resultante da captura produzida pela indústria cinematográfica.

Como exemplo, podemos citar um filme em cartaz, “O Cisne Negro", de Darren Aronofsky, que suscitou resenhas e reportagens. Várias delas resvalavam na Psicanálise, ao ser mencionada a "busca de perfeição e as experiências traumáticas" que a personagem de Natalie Portman interpreta.Exatamente por isso, gostaria de tentar expandir o trecho que diz que para "os artistas que batalham contra os limites do próprio corpo numa rotina espartana, é fundamental se manter no eixo."

Que eixo? Existe eixo nos excessos, nos transbordamentos? Ao abordar tais temas -a anorexia e a bulimia, a esquizofrenia e a paranóia, além da questão crucial do real e seu duplo- o filme voa bem mais alto que os saltos e pliés do "Cisne Negro" e adentra o terreno da Psicanálise. Dizer que é um filme sobre balé, como fizeram alguns críticos, é fechar os olhos, os horizontes , o pensamento.

Por uma via oblíqua, Aronofsky expressa à necessidade asfixiante de duplicar o real por demais inquietante que aterroriza Nina, a personagem e também, a nós, passageiros da velocidade e das pressões contemporâneas. E como isso aparece? Através das alucinações, fantasias e sonhos projetados na "outra", que criam uma realidade aparente, uma mistura entre real e o ficcional concebida no estofo de um "eu menor",como diz Clèment Rosset, atormentado por acontecimentos do mundo que são meras réplicas dos acontecimentos internos reais, de intolerável vigor. Eles reduplicam, anormalmente, a percepção do atual, por conta de uma precariedade existencial, de "uma insustentável leveza dos ser" diante do carater indigesto das exigências que a vida lhe faz. Uma mãe que dela quer fazer um duplo que dê conta de suas frustrações, um coreógrafo-tirano que deseja que ela atravesse a fronteira que liga sexualidade e horror, por conta de suas questões narcísicas. O real não dá conta de si mesmo e das exigências internas de satisfazer as demandas externas. A doença se manifesta e atinge um umbral crítico.É preciso um outro, uma projeção mimética do mesmo, um estranho-familiar que Freud chamava de "Unheimlich", para fazer a trajetória do cisne "branco" para o "negro". É necessário um jogo de projeções e identificações que tragam sustentação na criação de um outro lugar.A entrada em cena do duplo fantasmático, embora cruel, é necessária, porque sem ele o ser de Nina não é nada.

A narrativa do filme levanta, como um vento forte, o véu que encobre, em meio à suscetibilidade, a insuperável divisão estrutural de Nina, que leva à passagem ao ato. Entre aquilo que é da ordem das pulsões de autoconservação - a vida e o amor - e o que pertence à ordem dos rastros do silêncio - a pulsão de morte - o cineasta faz acontecer o terrível, o extraordinário, o sublime.

Lembrando que o advento do cinema é contemporâneo ao surgimento da "Interpretação dos sonhos", como fato inaugural do saber psicanalítico, lembramo-nos que tal questão não escapou à observação de Bernardo Bertolucci que afirmou, por ocasião do seu filme "La Luna", que o cinema de Freud eram os sonhos dos seus pacientes, pouco importando, no caso, se Freud gostava ou não de cinema.

O que sabemos é que não dá para ver certos filmes, e não pensarmos em sua eterna genialidade, que nos leva, sempre, à possibilidade de expansão psíquica.

Angela Villela e Luiz Felipe de Faria
Psicanalistas

4 comentários:

Anônimo disse...

Eu assisti o filme e vi a projeção de uma mãe tenebrosa.
Abraço Cynthia

selma monteiro disse...

Além do coméntário sobre o filme CISNE NEGRO, que serviu de exemplo para a matéria,os autores,Angela Villela e Luiz Felipe de Faria fizeram do cinema um instrumento da psicanálise, enquanto agente transformador de nossas vidas, na medida que "... a arte é um testemunho do inconsciente e o domínio fílmico,em particular, é aquele que, ao criar uma impressão de realidade, automaticamente descentra o sujeito das imagens fixas que tem de si mesmo, viabilizando a construção de outras. Ele se desdobra, se duplica. Cada um vê o seu filme, a partir de vivências particulares,dado o caráter totalmente subjetivo da experiência. Isso nos leva a pensar se essa não seria, também, uma das principais características do processo analítico. Vemo-nos como um e descobrimos vários." Adorei e sei que, ao ser uma cinéfila desde doze anos,e não ter oportunidade de fazer análise,sinto que minhas descobertas a respeito de meus "eus" me transformam numa pessoa mais humana e completa.

Anônimo disse...

O filme foi muito bom, a proposta do cineasta foi excelente... só faltou falar daquela atuação surreal da Natalie Portman. Me impressionou demais o resultado que ela conseguiu!

Parabéns pelo blog. Abraço

Dona MiMi disse...

Tbm tive essa mesma impressão, adorei a critca, muito boa mesmo. Adorei seu blog, seus textos, fotos sao muito escolhidos e escritos.Já estou te seguindo!