15 agosto 2008

FREUD EXPLICA ENTREVISTA ANGELA BEZERRA VILLELA

Para Angela, ser entrevistada é uma experiência, no mínimo, singular e estranha. Mas aceitou o desafio.

Ao fazer uma síntese de seu percurso profissional, se deu conta de que sua relação com o trabalho sempre ultrapassou os limites de um universo fechado em si mesmo. Extensões com o campo social sempre foram estabelecidas. Assim foi desde os 17 anos, como professora primária, especializada em alfabetização, trabalhando com comunidades carentes em escolas de difícil acesso. Participou da criação dos primeiros Cieps e teve a oportunidade de presenciar a inacreditável mudança trazida pelo pensamento revolucionário de Darcy Ribeiro. Nada pode ser mais representativo dessa mudança, segundo ela, do que a lembrança proustiana do cheiro de dobradinha vencida que, diariamente, invadia as salas de aula, sendo substituído pelo cheiro de arroz, feijão, carne, legumes e frutas. Acompanhou a expansão psíquica daquelas crianças, proporcionada pelo atendimento às suas necessidades básicas e por atividades suplementares. Imagina que se um projeto político consistente como esse tivesse tido continuidade, não estaríamos presenciando a tragédia que vemos hoje. “Saudades do Darcy e de seu entusiasmo”, lamenta.

O contato direto com as questões sociais permanece no trabalho que realiza, como psicanalista, no Hospital Universitário Gafrée Guinle. Começou como voluntária numa Ong, na época em que a Aids estava saindo dos guetos e se expandindo no universo feminino. Atendia pacientes grávidas num momento em que a doença ainda não tinha todo esse aparato científico. Atualmente, continua atendendo grupos e coordenando uma rede que busca ajuda vinda de diversos lugares. São amigos que dão cestas básicas, mesadas, remédios e capacitação profissional. Tiveram, agora, a adesão de um grupo de engenheiros que, voluntariamente, visitam as moradias e as transformam em lugares menos precários.

Considera esse o seu exercício de cidadania, o seu fazer-político nesse caldo de misérias em que vivemos. Paralelo a isso, acontece a Coordenação da Clínica Social da Freudiana, que vem de encontro a essa mesma perspectiva.

Sua graduação em Psicologia se deu pela UNESA, num tempo de guinada existencial. O desejo de percorrer novos caminhos e de se aprofundar intelectualmente levou-a a mudança de rumos.

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Freud explica: Por que a Psicanálise?

Angela Maria Bezerra Villela: Na universidade, me vi diante de um amplo espectro de vertentes teóricas, onde achava até divertida a defesa acirrada que os professores faziam de suas correntes, como se fossem partidos políticos. Às vezes, achava que se perdiam como pensadores em potencial, por estarem tão comprometidos em sustentar suas certezas e interesses teóricos. Acho que pela minha própria experiência de análise, fui capturada de imediato pelo espírito subversivo e pela capacidade de expansão psíquica que via na psicanálise. Ao mergulhar nos textos freudianos, percebi o amplo espaço simbólico de cultura que se abria para mim, através da convivência com outras áreas de saber, como a filosofia, a história, a antropologia, etc.. O começo da prática clínica e os instrumentos de escuta para o sofrimento e a dor que a mim se apresentavam, foram solidificando minha escolha. A entrada na Formação Freudiana e as aulas de Chaim Katz só fizeram reforçar o que já estava inscrito.

Freud explica: É visível o seu interesse pela clínica. Existe alguma preferência por uma clinica diferenciada, jovens ou adultos, por exemplo?

Angela: Não há preferência ou escolha por uma clínica diferenciada, isso não existe para mim. Clínica é lugar de acolhimento da dor e sendo assim, não se trata de escolher uma faixa etária ou outra. Acolho demandas das mais diversas ordens e é assim que gosto de trabalhar.

Freud explica: Parece que os jovens se adaptam melhor que os idosos, por exemplo, à velocidade e a urgência dos tempos modernos. Como isso aparece no seu consultório?

Angela: Essa relação que os jovens e os idosos trazem para a análise, quanto à urgência e a velocidade, não é muito diferente sob um determinado aspecto a angústia e o consumo do tempo. Tenho um paciente idoso que diz que “o inexorável encurtamento do tempo, faz com que ele queira aproveitar ao máximo o restinho que lhe cabe”. A mesma fala vem de um outro homem de mais de 60 anos, que já teve um câncer de próstata e que traz uma ansiedade imensa diante das inúmeras coisas que quer fazer. A proximidade com a morte traz uma urgência de outra ordem e poder falar sobre isso é o que faz com que muitos idosos procurem a análise. Numa outra perspectiva, uma mulher na faixa dos 50 anos, traz o avesso disso. Viveu de forma destrutiva e achava que ia morrer cedo. Foi surpreendida pela vida e hoje, por não ter “sobrevivência na adrenalina”, como ela mesma diz, interroga a analista sobre como vai preencher esse “tempo insosso”. O discurso deprimido é acompanhado pela escuta analítica, que tenta instaurar outras temporalidades, outras aberturas possíveis, diante do fechamento e das restrições trazidas.

Quanto aos jovens, a angústia que se estabelece em relação ao tempo, também diz respeito a um excesso. Diante de tantas demandas e informações, eles se vêem obrigados “a consumir o tempo”, como se não pudessem perdê-lo de forma alguma. Há um imperativo categórico de curtição e isso gera muita angústia. Além disso, as próprias transformações sociais e culturais estabeleceram entre essa nova geração e o trabalho uma relação diferente, pois é preciso ganhar muito dinheiro desde cedo. As drogas e outras modalidades de anestesia se fazem presentes para diminuir a ansiedade que advém desse esforço. Também as demandas em relação ao corpo produzem sintomas, como a anorexia e a bulimia, meras tentativas de “correr atrás” das cruéis exigências contemporâneas. Sem falar nas relações amorosas, que há muito entraram nesse esquema devorador do tempo. Haja compulsão. Hoje é tudo rápido e fugaz.

Freud explica: Eu li num artigo seu recente, uma afirmativa de Hannah Arendt: “O homem perdeu a fé em si mesmo como parceiro de seu pensamento.” Parece ser uma afirmação profética que aponta para um distanciamento entre as instituições públicas e o homem comum conduzindo-o para o horror e a alienação. Como você coloca essa questão?

Angela: A fala de Hannah Arendt, na realidade, entra a reboque de todas as questões acima mencionadas. Quem resgata a potência dessa grande pensadora e sua análise dos fenômenos sociais é Julia Kristeva, ao apontar o perigo que “a desolação vindoura das massas amorfas” produz e que só encontra antídoto no vigor do pensamento. Escrevi esse artigo movida pelo espanto que toda essa apatia diante da violência me causa, além do imobilismo intelectual do qual fala Arendt e que se parece muito com o que aconteceu durante o regime totalitário por ela experimentado. Na minha opinião, são raros os autores cujo pensamento esteja tão próximo da nossa realidade política atual como Hannah Arendt, que dizia que o horror e a barbárie trazidos pelo totalitarismo escapavam ao entendimento humano e atingiam o irreal. E não é isso que estamos vivendo com os fatos contemporâneos? Segundo Kristeva, “o mal radical por ela apontado reduz os homens a uma superfluidade e criam uma história política que prefigura o aniquilamento escandaloso da vida, pondo em risco a mais humana de todas as atividades o pensamento.” Sob o ponto de vista psicanalítico, o que ela denuncia é a perda da interioridade, da capacidade de reflexão, que levam o homem a agir e a mudar o destino dos acontecimentos, através “da fé em si mesmo como parceiro de seus pensamentos.” Não há mudança política possível se não houver a constituição de uma nova mentalidade para longe dessa superfluidade.

Freud explica: Como a psicanálise se coloca na cena atual? E os psicanalistas, o que têm a dizer sobre aquilo que escapa do cenário midiático, que obscuro, inominável e obsceno?

Angela: Nesse sentido, não se sustentam os argumentos de que a psicanálise não tem contribuições a dar diante da velocidade dos fatos contemporâneos. É exatamente o contrário. É em contraposição a esse consumo do tempo que priva o sujeito de um pensar mais profundo, que sua atualidade é revalidada, já que ela possui instrumentos clínicos e teóricos de constituição dessa interioridade que se esvazia diante dos apelos da exterioridade. Penso, apenas, que essa potência precisa ter mais visibilidade.

Derrida dizia que “a psicanálise tem que ser levada a campos onde ela até agora não se fez presente. . . Freud nos ajudou a pôr em questão um grande número de coisas referentes à lei, ao direito, à religião, à autoridade patriarcal, etc. e através dele se pode relançar a questão da responsabilidade e da autonomia, sobre um fundo inesgotável e invencível de uma heteronomia.” Ou seja, entre a singularidade irredutível de seu espaço particular e as crises trazidas pelo contexto sócio- cultural, a psicanálise terá que encontrar um lugar diferente no espaço público.

Quanto ao obscuro, inominável e obsceno, sabemos que é na especificidade do campo analítico que se pode criar um lugar para aquilo que não cabe em lugar nenhum.

Freud explica: Contardo Calligaris faz uma diferenciação entre psicanálise e psicoterapia. Para ele a psicoterapia estaria comprometida com a cura, a busca da normalidade, enquanto a psicanálise não se interessa por essa busca, já que quer promover uma mudança. Como você vê essa questão?

Angela: Na primeira, a idéia de cura inclui um objetivo, um lugar aonde se deve chegar, o que por si só já restringe, ao passo que na vertente psicanalítica não podemos estar presos a lugar nenhum. Sequer ao tempo e à duração do tratamento. O indivíduo que se apresenta na clínica, hoje, é o homem apressado que quer uma solução rápida para seus conflitos. O lema “nada a longo prazo” é apontado por Sennett como uma lei contemporânea. Relações, trabalho, projetos, tudo requer uma curta duração. E em análise, não há como se poupar caminho, há que se pagar o preço. . Em “Estudos sobre a Histeria”, Freud já dizia: “Tive que pegar mais de um caminho para encontrar alívio para o doente. . .”

Em o “Homem dos Lobos”, ele dá prosseguimento a essa questão da cura, através da idéia de que a precipitação do término de um processo não leva em consideração os restos. Como acabar com eles? O que é a cura na perspectiva psicanalítica?

A psicanálise caminha na contra-mão dessa urgência, pois o que temos ao longo de um processo são errâncias, incertezas, intensidades à deriva e o que se busca ali está longe de ser “uma normalidade”. O analista lida com partes incomunicáveis e com forças hostis inconscientes. Assim sendo, ele não sabe quando, nem de onde virá o movimento que desconstruirá um sintoma. Não existem garantias de parte a parte, o que torna o processo analítico uma aventura e isso para mim é que é fascinante

Freud explica: Como a psicanálise pode promover mudanças levando-se em consideração que o que produz mal-estar na cultura é da ordem do pulsional?

Angela: Com a anunciação da pulsão de morte, a psicanálise percorre um caminho oposto ao da normatização. Não se trata de enquadrar e apaziguar e sim de integrar forças que operam longe do equilíbrio. A teoria pulsional demonstra que a genialidade maior de Freud consiste, exatamente, na criação de novos paradigmas para se pensar a questão do humano. Ele nos levou a um redimensionamento teórico e clínico.

Acolher as pulsões e criar condições e possibilidades para que elas sejam introjetadas, é se deslocar desse ideal de cura para um trabalho, ou seja, a produção de uma singularidade pulsional. A compulsão à repetição coloca o sujeito num tipo de funcionamento restritivo e o sofrimento psíquico é grande. Mudar esse regime de forças, mexer nesse jogo cruel que a pulsão de morte estabelece, é fazer com que a pessoa que procura análise mude seu modo de existência. Essa é a diferença, a marca. Essa a mudança que se pode produzir.

Freud explica: Considerando a velocidade dos tempos modernos e suas virtualidades, o blog Freud Explica contribui para a disseminação da psicanálise

Certamente que o blog Freud Explica contribui, na medida em que está inserido nessa evolução tecnológica dos processos de midiatização que engendram modos diferentes de comunicação. Como disse uma pesquisadora, “computadores são as novas arenas para a experiência social e política e seus produtos propiciam novas formas de interação, diálogo e conversa.”

Nesses tempos de desterritorialização, o blog funciona como hospitalidade ampliada de toda essa pluralidade contemporânea, ao mesmo tempo em que ajuda a criar uma proximidade e uma coexistência maior de comunidades com interesses afins. Tanto como veículo utilitário de informação ou como espaço virtual de troca de conhecimentos, para nós, psicanalistas, o blog entra como um dispositivo a mais de transmissão, contato e partilha de saber.

Freud explica: E como o cinema aparece nesse cenário? Seria uma mera coincidência terem nascido quase juntas, na mesma época?

Angela: Prefiro a palavra encontro à coincidência.

Buñuel dizia que “o cinema, como o sonho, por seu próprio mecanismo, nos abre uma pequena janela sobre o prolongamento da realidade. Minha aspiração como espectador de cinema, é descobrir, através de um filme, qualquer coisa que não se pode ver na realidade objetiva”.

A citação acima, que serviu de abertura do projeto que desenvolvi com meu querido amigo Luis Felipe de Faria para a Formação Freudiana, sintetiza a proximidade com a psicanálise que tanto quisemos explorar.

Como os filmes de Buñuel, a psicanálise lida com os sonhos, com as coisas tiradas do inconsciente, da memória. “Meus filmes são apenas tão misteriosos e absurdos como a própria vida”, dizia ele e seus personagens sempre se caracterizaram por revelar a verdade do inconsciente, aquilo que está fora de todas as fronteiras de significação.

Buñuel trabalhava com o nonsense e talvez, por isso, seja um dos cineastas que melhor ilustram e respondem a questão colocada.

Freud explica: Eu gostaria de ter participado mais ativamente desse grupo, porque sempre que eu pesquiso sobre cinema acabo desembocando na psicanálise. São poucos os gêneros de filmes que não trazem algo da psicanálise.

Angela: Concordo. Foi um projeto cheio de boas intenções, que tinha como objetivo explorar essa convergência, além de agregar, reunir e debater impressões, num esquema mais informal e descontraído na FF. Uma espécie de “Sociedade dos Amigos da Psicanálise e do Cinema”

Um comentário:

Anônimo disse...

OTIMA ENTREVISTA ENRIQUECEDORA!!
PARABENS