Por Rogério Silva
Chovia muito. Seu chapéu de feltro e a parca eram insuficientes para aquela chuva. Ele nunca gostou muito de usar guarda-chuva e o jeito era ficar de marquise em marquise, ou entrar em algum lugar e esperar um pouco. No outono carioca a chuva não demora muito, mas o vento frio batia no rosto e gelava. Na porta do Ernesto, famoso bar da Lapa, não teve outra saída se não entrar. A casa estava cheia, com poucos lugares vagos, mas aquela mesa lhe chamou a atenção. Havia algo de familiar no rosto daquela moça. Não o reconheceu de saída. Enquanto se encaminhava para a mesa, fascinado por aquele olhar, pensava quão desagradável seria perguntar: - Não te conheço de algum lugar? E receber como resposta: - Engraçadinho!... Ou outra coisa constrangedora.
Seus olhos já haviam se encontrado e um sorriso iluminava o rosto dela. Mas quem era? Ele pensava desesperadamente. Atraído por aquele olhar, atreveu-se. Puxou a cadeira e perguntou: - Posso?...
– Carlos, há quanto tempo! - Exclamou com sorriso de felicidade.
- Desculpe, mas... Já se sentando.
- Natalia, ou melhor, Natalie. Não se lembra mais de mim? Disse mostrando desapontamento.
É claro que ele se lembrava, mas mais de dez anos já se passaram. Ela usava longos cabelos negros, quase na cintura. Agora eram curtos com mechas douradas e havia alguma coisa nova naquele rosto que mudava muito o visual.
- Estou tomando chope, quer? Garçom! Mais um aqui. Acabei de chegar de Nanci. Fiz mestrado e doutorado em Paris. Fiquei casada com Pierre, um colega do mestrado, durante seis anos, tive uma filha, descasei e voltei para o Brasil com Natalie que tem quatro aninhos. Chegamos à semana passada.
- Puxa, essa chuva, de repente..., bendita chuva, senti muita saudade. Disse, sem deixar de demonstrar a felicidade com o encontro.
- Eu sei, eu sei. Fui muito má com você. Saí daqui muito repentinamente. Meus pais não queriam que eu fosse. Briguei com eles e saí meio fugida. Não me comuniquei com ninguém.
Ela contou o empenho que despendeu, as brigas com os pais, os malabarismos para tirar passaporte, comprar passagem, trocar dólares, etc. Ficaram em silêncio, por uns instantes, se olhando nos olhos. O sorriso desapareceu, dando lugar a uma profunda tristeza e os seus olhos umedeceram. Eles sentiram uma sinergia muito grande. Todos os sentimentos antigos pareciam brotar
- E você, me conta o que tem feito? - Chamou o garçom e pediu mais dois!
- Também casei. Tenho dois filhos, Pedro e Alexandra. Cláudia da aula na universidade. Vivemos bem. Financeiramente não temos o que queixar, mas profissionalmente... Tardiamente descobri que não dou para a vida acadêmica e me aventurei
- Eu sei. Essas eram as nossas brigas, lembra? Eu sempre dizia... Ainda bem que sempre fomos só bons amigos. Eu pensava grande para você, mas você era muito conformado. Só que tinha uma inquietação, uma vontade muito grande de ajudar os outros. Só não sabia andar sozinho e isso me irritava muito.
- Minha mulher sempre me diz isso. Milton Schneider, meu analista, também. Temos trabalhado muito nesse sentido.
- O que sempre me incomodou em você, é que você é muito lento. Eu sei que é o seu ritmo, mas as oportunidades passam. A fila anda. Sabe? Eu cheguei até a pensar em me casar com você. Talvez eu não tivesse saído do Brasil. Continuou com os olhos voltados para o chão. Mas...
Aquele encontro chegou a um nível de intimidade que o perturbou. Havia poucos instantes ele mal a reconhecera e agora eram íntimos. Tocavam-se com as mãos. Como pode, depois de mais de dez anos? Doze, para ser exato. Ele se sentia nu diante dela e ela muito protegida para ele. Ela continuou. Parecia que estava ali para cumprir uma missão e não iria embora enquanto não tivesse terminado.
- Em Nanci eu tive um analista que me fazia lembrar muito de você o tempo todo. Jean Bertrand era um homem calmo, paciente, inteligente e de uma cultura vastíssima, mas tinha um modo de se mover que me lembrava você. Fisicamente era diferente, mas quando eu fechava os olhos. Incrível! Era você. Até o tom de voz.
- Mas por que Natalie? -perguntou numa tentativa de sair daquela situação que apertava o seu coração. Ele estava num terreno familiar, mas insólito demais. E depois Natalie era como ele a chamava na convivência da faculdade.
Ela deu um sorriso maroto e falou:
- Fui eu quem escolheu o nome. Sabia? Acho que era saudade. Seus olhos marejaram novamente, e ela continuou: - Pierre também gostou. O que ele não sabia é que você me chamava de Natalie.
- Pierre era um bom companheiro, continuou, mas tinha um grave defeito. Quando bebia tornava-se violento e me agredia com palavras. Isso me machucava muito. Nunca havia me batido, até que numa festa de aniversário de Natalie, depois que as visitas saíram ele estava tão bêbado que, numa briga, ele me arremessou uma jarra de vidro que se espatifou no meu rosto fazendo uma ferida horrenda. Fiquei hospitalizada durante muito tempo. Natalie ficou sendo cuidada por amigos. Pierre passou a ficar gentil comigo, mas nunca mais quis saber dele. O conserto do meu rosto ficou muito caro. Foram quatro plásticas. Quase um ano longe da universidade. Muito tempo longe da minha filha e muito dinheiro gasto. Meus pais mandavam dinheiro daqui do Brasil.
Após esse relato, o tempo passou entrecortado entre frases curtas e muitos minutos de silêncio. Carlos suava muito e usava o lenço para enxugar o rosto e os olhos. Milton perguntou:
- Por onde anda o seu pensamento agora?
- A fila anda! Respondeu com a voz quase inaudível e ar de desânimo, e continuou: - O encontro com Natalie e tudo o que ela me contou. O meu casamento... A minha profissão... Aqui...
-Você se da conta de que esta sessão está muito parecida com as últimas sessões? Mesmo com dados novos? Perguntou Milton.
- Como assim? Faz mais de dez anos que não via Natalie. Uma turbulência de sentimentos vindos à tona. Disse com ar de espanto.
- A fila anda. Pense nisto. Até a próxima quarta, disse Milton levantando-se e estendendo a mão para o cumprimento final.
Foto: Humphey Bogart em Casablanca
Um comentário:
Rogério, muito bom o fragmento de texto. Envolvente, faz despertar o lado "Milton" de cada um. Abraços, Luiz Carlos.
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