Por Rogério Silva
Vladimir Safatle apresenta no seu artigo deste domingo do Caderno mais! (para assinantes da Folha ou da UOL) da Folha de São Paulo: A psicanálise e o liberalismo um entendimento de que as obras de Jurandir Freire Costa querem mostrar que "a religião não é o produto de uma mente em débito com o sexo, a morte ou a alienação ideológica". Mas talvez Freud não procure só reeditar o combate entre luzes e superstição, mas insistir em que a modernidade está bloqueada devido a um modo de organização libidinal reproduzido, de modo simétrico, em estruturas institucionais como a família, a religião e o Estado.
Como se as estruturas institucionais de reprodução de nossas formas modernas de vida, longe de serem desencantadas e laicas, ainda fossem dependentes de esquemas "teológico-políticos" que encontramos, principalmente, na tradição "greco-judaico-cristã". Afinal, não é sintomático que, mesmo não sendo o produto de uma mente em débito com o sexo e a morte, as religiões cristãs não cessem de falar sobre morte e sexo, de tentar nos ensinar como normatizá-los? É o que se pergunta.
É bom lembrar como e porque a Liga Brasileira de Higiene Mental foi fundada em 1923. O termo Higiene Mental proposto, foi substituído em 1948 por Saúde Mental. Mas a idéia da Liga trazida para o Brasil por Gustavo Riedel recebeu sua incumbência de Clifford Beers, tinha como finalidade a melhoria do atendimento aos portadores de doença mental.
A questão da eugenia no Brasil tem sido apresentada sob vários aspectos, alguns criaram “mal-estar” nos meios psiquiátricos, seja pelo tom acusador, seja pela injustiça cometida, e têm sido repetidos em sucessivos trabalhos universitários. A partir do livro de Jurandir, é citada a opção eugênica da Liga Brasileira de Higiene Mental, na década de 1930. Essa opção é explicada pelo autor como uma aproximação aos ideais nazistas da psiquiatria alemã. O fato de ter sido publicado nos Arquivos de Higiene Mental a Lei eugênica alemã de 1934 dá a impressão de reforçar as idéias do autor. Num período atribulado da história brasileira: a crise econômica de 1929, a revolução de 1930; a revolta constitucionalista de 1932; a revolta comunista de 1935 e a tentativa de golpe integralista de 1938. O Brasil vivia num período de afirmações totalitárias e convivia com a ditadura Vargas que tentava se equilibrar entre as forças em luta pelo mundo.
Sem dúvida nenhuma, a eugenia perdura na atualidade, com outros nomes: aconselhamento genético, controle da natalidade, perfil de DNA e outros. O fato de ter sido utilizada pelos nazistas na sua Solução Final já é outro assunto.
Contudo, a repetição nos meios acadêmicos de críticas à Liga criou um “mal-estar” em que não é saudável se afastar de certas posições repetitivas de crítica ou posicionamento ideológico. Nota-se nos diferentes trabalhos uma certa repetição da visão de alguns pesquisadores, como Jurandir com sua História da Psiquiatria Brasileira que, em verdade, se trata de uma apreciação de determinado período de atuação da Liga Brasileira de Higiene Mental.
Gustavo Riedel, natural do Rio Grande do Sul, entrou na Escola de Medicina de Porto Alegre e no meio do curso transferiu-se para o Rio de Janeiro. Tornou-se clínico e graças ao seu prestígio foi nomeado diretor da Colônia do Engenho de Dentro que hoje é leva o seu nome. Recebeu do próprio Clifford Beers a autorização para a criação da Liga de Higiene Mental no Brasil. Sua filosofia de atuação foi grandemente influenciada pelo movimento sanitarista. Destaca-se a excursão de Belisário Penna e Arthur Neiva pelo nosso interior em 1916, que constatou as precárias condições sanitárias da nossa população. Ecoava na imprensa a famosa frase de Miguel Pereira, “O Brasil é um imenso hospital”.
A Liga era uma entidade multiprofissional, sem fins lucrativos e recebeu verbas oficiais. Uma espécie de terceiro setor (ONG). Daí se concluir que era um órgão estatal vai uma grande diferença. Citando E. Antunes. “O entusiasmo dos psiquiatras brasileiros pelos postulados nazistas alemães, avaliados por Jurandir Costa pode expressar, além de opções político-ideológico de alguns psiquiatras, o desejo de um modo similar de Estado que assumisse de forma tão arraigada as propostas eugenistas. Ou seja, uma organização estatal que estenderia a sociedade a partir de uma única matriz conceitual - a biológica -e, portanto com aspirações totalitárias”. Ainda é E. Antunes quem cita três possíveis tendências dentro do movimento de higiene mental: 1. a eugênica, representada pela Liga e, também, pela Liga Paulista de Higiene mental; 2. a antropo/sociológica - na qual, o grupo de Pernambuco e alguns higienistas baianos, têm significativa importância; 3.a psicanalítica - em que pode ser incluído o Serviço de Higiene Mental do Escolar de São Paulo”. Esta classificação salvaria do apelido nazista os primeiros psicanalistas como Julio Porto Carrero e Durval Marcondes que pertenciam ao movimento de higiene mental e a Ulysses Pernambucano, fundador da Escola Psiquiátrica do Nordeste. Nem uma coisa nem outra, nem esses eram nazistas, muito menos os demais psiquiatras. O mais contundente depoimento a respeito da questão foi feito por Arthur Ramos (Saúde do Espírito, publicação do Ministério da Saúde que em 1956 estava a na sexta edição). Todo o capítulo da chamada “higiene racial” tem de ser revisto aqui. No Brasil, especialmente, muito se clamou, pela voz de alguns teóricos estrangeiros (e alguns nacionais), que somos um “povo inferior”, provindo de “raças inferiores”, que aqui cruzaram suas “hereditariedades desarmônicas”. O negro foi a nossa perdição! - clamaram alguns e também James Watson recentemente. Devemos voltar ao ariano! Gritaram outros. Esses falsos cientistas acharam ainda que a mestiçagem era um fator de “degenerência”. Uma das causas do nosso atraso estava no mestiço desarmônico, incapaz, inferiorizado. Uma balela científica, hoje só aceita por certos pseudo-cientistas que fazem “ciência” a soldo político. Fora com esses racistas, partidários da raça pura no Brasil! O que se atribuía a um mal de raça verificou-se que era um mal de condições higiênicas deficitárias: subalimentação, pauperismo, doenças, alcoolismo... carregando no seu bojo toda a sorte de “inferioridades”... A higiene mental... A sua campanha é mais vasta e mais complexa, Porque se dirige às raízes sociais dos desajustamentos humanos “. (apud E. Antunes)”.
Além desta obra, Jurandir também publica O risco de cada um e outros ensaios de psicanálise e cultura. Estes ensaios confirmam a importância e a fecundidade das reflexões de Jurandir Freire Costa. Os textos (sobre linguagem, religião, literatura, sentido, cérebro, indagação filosófica e tantos outros assuntos, a partir, naturalmente, da psicanálise) cumprem a difícil condição de unir profundidade no pensamento e clareza na expressão. Aqui, mais uma vez Jurandir Freire se debruça sobre as grandes questões do nosso tempo à luz das questões permanentes da condição humana.
Vários dos capítulos são frutos de suas pesquisas em andamento, em torno da relação entre sujeito e transcendência. Partindo da idéia de que as hierarquias simbólicas tradicionais são regidas pela moral do sacrifício, Jurandir Freire aborda idéias como fé religiosa, dívida simbólica, criatividade, ética, desamparo, culpa e transgressão em autores como Freud, Nietzsche, Bergson e William James, pedindo apoio ao que chama de “espectros de Winnicott” para propor uma visada inovadora da constituição do sujeito humano. Como pano de fundo, o compromisso ético que permeia toda a sua obra.
Não é a toa que encontramos em uma de suas obras Sem fraude nem favor, afirmativas que nos levam a crer que tudo o que foi inventado pelo homem, fazem deste ser moral. O amor, o fogo, o casamento, a medicina, o direito, a arte erótica chinesa, os deuses e as religiões, a democracia, o crime etc. são apenas criações humanas.
Não custa lembrar o que dizia Marco Aurélio: “Logo, esquecerás tudo: logo, todos te esquecerão.”
3 comentários:
Rogério,
encontrei um texto (um livro, na verdade) antigo do Chaim, Psicanálise e Instituição, não sei se conhece, mas que parece muito bom para pensar essa questão. Nele Chaim defende que a psicanálise foi um duro golpe na moralidade de tipo burguês, e penso realmente o foi, de modo a alterar uma série de relações no quesito domínio da sexualidade. Não li o texto todo, então não sei os rumos que Chaim adota no desenvolvimento das questões, mas tenho alguns questionamentos (não são críticas, na verdade acho que Chaim concordaria com eles). A psicanálise enquanto instituição seria possível sem os elementos de constituição política fornecidos pela revolução burguesa (o ataque da psicanálise à moral burguesa, não é propriamente um ataque ao modelo político) e seria a prática da psicanálise política sem o ambiente político permitido na disposição liberal. Pensemos na extrema regulamentação dos modelos estatistas. A desregulamentação da psicanálise só é possível em ambientes de liberalismo político (claro que nem todos, pois a disposição liberal pode regulamentar, e assim, acabar com a psicanálise). Comentei esses assuntos em algumas postagens que acompanhou... Acho que é o mesmo problema.
Um abraço,
Cesar
Cesar
Chaim não toca especificamente na questão da Liga Brasileira de Higiene Mental e da eugenia em seus ensaios (cito também Ética e psicanálise e Psicanálise e Nazismos onde as questões institucional estão presentes vigorosamente), mas investe pesado no que se refere à instituição. Talvez ele mesmo possa nos iluminar com algo que não abordamos ou o fizemos de modo precário.
Contudo, a regulamentação da psicanálise e sua pratica e os movimentos atuais neste sentido precisam de um debate mais intenso para aumentar o senso crítico dos que exercem a psicanálise. Essa bola não deve cair nuca senão ela murcha.
Quem quiser pode da uma olhada no seu blog Teoria Psicanalitica (vide link ao lado) na postagem As instituições da de 14 de dezembro. psicanalise
Abs rogerio
A postagem é: As instituições da psicanálise de 14 de dezembro último.
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