06 fevereiro 2008

DEMOCRACIA E DESEJO DE VIOLENCIA

Por Rogério Silva

O caderno mais! da Folha de São Paulo desse domingo trás o artigo O soldado de Tocqueville onde o escritor Michel Houellebecq discute a democracia prevista pelo pensador francês, aborda a hegemonia cultural americana e faz uma defesa do futebol como antídoto ao "desejo de violência"

Deixando de lado a questão da hegemonia cultural Americana, me chamam mais a atenção as questões que tratam da democracia e do desejo de violência.

Houellebecq enaltece Auguste Comte (1798-1857), cujo pensamento teve um papel tão importante na formação do Brasil e ainda seguindo o que a idéia continha, acrescenta que na era militar, o principal meio de que uma população dispunha para aumentar seu nível de vida era invadir o território de seus vizinhos. Na era industrial, a guerra, pensa Comte, deve normalmente tornar-se econômica.

Essa mudança de enfoque deve mudar também o modo de como o homem se apropria de suas aquisições no mundo moderno.

Segundo Elias Canetti, a caça e a guerra se diferenciam pelo modo de agir do homem para obtenção de seus objetivos. Na caça ele se move em direção a um ser vivo que deseja abater, para incorporar a si como alimento. Abater é sempre a sua meta mais próxima. O alcançar e o cercar são os seus meios mais importantes. O seu alvo é um único e grande animal que deve servir de alimento para si e para o seu grupo. Na guerra, porém a finalidade é o aniquilamento do outro com o objetivo de apropriar-se do que o outro tem e por isso encontra sempre uma oposição que lhe promove perdas, humanas e materiais, durante o embate.

Quando Comte afirma que a era industrial, deve normalmente tornar-se econômica, eu entendo que ele quer demonstrar que o homem estará cada vez mais distante do homem que come o que caça, do que aquele que adquire seus bem e alimentos pelas leis de mercado. Sob esse aspecto os etólogos humanistas se ocupam melhor quando estudam o homem e seu comportamento no fenômeno da violência. Mas este é um assunto que me ocuparei numa próxima postagem.

Houellebecq acredita que se as revoluções e as guerras, como previa Comte, acabassem por desaparecer, dando lugar ao consenso liberal e as guerras ficassem limitadas ao campo econômico, seria necessário encontrar um canal de escoamento para esse desejo de violência.

Com isso ele trás o futebol como um meio de liberação de adrenalina que seja capaz transformar um combate físico num combate lúdico, principalmente nos jogos como a Copa do Mundo onde está presente a identidade nacionalista.

Contudo, suas idéias vão de encontro à sociedade descrita por Tocqueville, diferindo apenas num detalhe: a família, a última estrutura social que ele via subsistir, em meus livros está desaparecendo.

É importante observar também o papel da mídia, particularmente da televisão, doméstica e onipresente, no rompimento do isolamento familiar e conseqüentemente, na dificuldade crescente dos pais controlarem o que vai ser transmitido a seus filhos.

Para Elizabeth Roudinesco, a família tentacular contemporânea, menos endogâmica e mais arejada que a família estável no padrão do século XIX traz em seu bojo as marcas de sonhos frustrados, projetos abandonados e retomados, esperanças de felicidade das quais os filhos, se tiverem sorte, continuam a ser portadores. Pois cada filho de um casal separado é a memória viva do momento em que aquele amor fazia sentido, em que aquele par apostou na falta de um padrão que corresponda às novas composições familiares, na construção de um futuro o mais parecido possível com os ideais da família do passado. Ideal que não deixará de orientar, desde o lugar das fantasias inconscientes, os projetos de felicidade conjugal das crianças e adolescentes de hoje. Ideal que, se não for superado, pode funcionar como impedimento à legitimação da experiência viva dessas famílias misturadas, engraçadas, esquisitas, improvisadas e mantidas com afeto, esperança e desilusão, na medida do possível.

Mas o processo de atomização social de Houellebecq está a ponto de atingir seu estágio final. Ao mesmo tempo em que, como ele havia previsto, o controle higienista social é cada vez mais minucioso e coercitivo, como a proibição de fumar.

O que lhe deixa mais surpreendido em Tocqueville é que, apesar de acreditar que a democracia reduz o homem, que pode degenerar para um despotismo infantilizador, não deixa de ser partidário da democracia. Ele acredita que Tocqueville era sinceramente partidário da democracia, porque sentia a injustiça do sistema aristocrático.

Portanto, o maior inconveniente de uma democracia, para resumir Tocqueville, é a transformação de uma sociedade em um rebanho obediente, uniforme, de indivíduos não ligados entre si, unicamente ocupados com sua saúde e seu prazer. Com um controle social cada vez mais protetor, infantilizador. Em resumo, é a impossibilidade do aparecimento e do desenvolvimento de individualidades fortes.

Quando elas aparecem, se quiserem sobreviver, se quiserem acabar seus dias em outros lugares que não hospitais psiquiátricos, só têm uma única saída socialmente aceitável: lançar-se em carreira artística. Em termos artísticos, assim que tentamos agradar, que buscamos o consenso, que nos afastamos do processo simples no qual um artista é direta e pessoalmente responsável por uma obra, caímos inevitavelmente na mediocridade.

Na postagem anterior me ocupei com a questão da eugenia no Brasil que tem sido apresentada sob vários aspectos. A partir do livro de Jurandir, é citada a opção eugênica da Liga Brasileira de Higiene Mental, na década de 1930. Essa opção é explicada pelo autor como uma aproximação aos ideais nazistas da psiquiatria alemã.

Talvez eu tenha sido excessivo na postagem, mas será que não poderíamos aproximar as idéias de Houellebecq/Tocqueville das idéias contidas naquela postagem?

3 comentários:

cesar kiraly disse...

Oi Rogério,

eu li essa matéria na folha de são paulo. Mas não sei se esse camarada entendeu bem as idéias de Tocqueville ou as de Nietzsche. Não conheço os seus romances, mas as investidas filosóficas que empreende são muito, mas muito, fracas. Claro que minhas críticas são para o Houellebecq, com os seus comentários eu concordo. Mas uma coisa gostaria de recomendar, na sua esteira que vc propõe, é preciso reler Canetti. Pois não acho que ainda conseguimos a aproveitá-lo da melhor forma possível, se é que é possível, mas toda vez que abro Massa e Poder, tomo um susto. Com a originalidade e a paciência do pensamento. Isso para nós, para o Houellebecq: é preciso ir, correndo, ler Tocqueville.
Um abraço,
Cesar Kiraly

Rogério Silva disse...

Cesar

No texto do jornal Houellebecq afirma que a guerra aumenta a taxa de adrenalina não somente dos generais, mas também dos simples soldados. Arriscar a vida é coisa excitante. O homem ama o combate. O desejo de violência no homem, em particular seu desejo de violência coletiva, seu lado animal de rebanho, se satisfaz diante das revoluções e das guerras.

Elias Canetti por sua vez apresenta: “A diferença fundamental entre as maltas de guerra e de caça situa-se na duplicidade da primeira. Na medida em que se tenha uma tropa excitada a dar caça a um único homem a quem ela deseja punir, tem-se uma formação de natureza análoga à da malta de caça. Caso esse homem pertença a um outro grupo que dele não deseja abrir mão, logo teremos duas maltas a se enfrentar. Os inimigos não são muito diferentes entre si. Trata-se de seres humanos, homens, guerreiros. Na forma original como as guerras eram travadas, os inimigos assemelham-se tanto que demanda esforço distingui-las. Ambos possuem a mesma maneira de lançar-se uns sobre os outros, e seu armamento é aproximadamente o mesmo. De ambos os lados dão-se gritos selvagens e ameaçadores, e as duas partes apresentam-se munidas da mesma intenção para com o inimigo. A malta de caça - contrariamente a isso - é unifacetada: os animais contra os quais ela investe não tentam cercar ou capturar os homens. Eles estão em fuga, e se por vezes se defendem, tal se dá no momento em que se deseja matá-los. Na maioria das vezes, nem sequer têm condições de, então, defender-se dos homens.”

Será que a minha leitura de Canetti está tão imprópria assim? E o homem que já não caça para comer, compra no mercado?

O que não dá é para concordar com Houellebecq é quando acrescenta que se as revoluções e as guerras acabassem dando lugar ao consenso liberal e elas ficassem restritas ao campo econômico, seria necessário encontrar um canal de escoamento para escoar o desejo de violência e esse canal seria o futebol. Pensar que o futebol pode servir de amenizador de violência é desconhecer o futebol do Brasil, da Inglaterra ou de qualquer parte do mundo.

Grande abraço de Rogério

cesar kiraly disse...

Oi Rogério,

concordo com a sua leitura de Canetti. Quando recomendo reler Canetti quero dizer que seu pensamento, pelo menos para mim, por vezes é um pouco esquecido. Acho que as relações de massa e formação de hordas, até mesmo os comentários de Canetti acerca da matilha, são fundamentais. Não concordo é com a leitura que Houellebecq faz do Tocqueville. Como um simples tradicionalista achando graça da vulgarização democrática. Com vc sempre concordo... Um abraço,
Cesar