01 dezembro 2007

O SEGUNDO HOLOCAUSTO

12/12/2005

O presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, voltou a aparecer em cena. Eu já tinha saudades de Mahmoud: seriais killers são paixões desde a infância. Há uns meses, o nosso Mahmoud declarou que Israel deveria ser riscado do mapa. A comunidade internacional ficou "espantada" e "chocada". Agora, Mahmoud voltou ao ataque: primeiro, para levantar dúvidas sobre a existência do Holocausto; e, depois, para propor a recolocação dos judeus do Oriente Médio na Alemanha e na Áustria.

E a comunidade internacional? Precisamente: continua "espantada" e "chocada". Cuidado, gente: não é saudável tanto "espanto" e tanto "choque". E, além disso, não é necessário. As palavras de Mahmoud Ahmadinejad estão em perfeita sintonia com a retórica anti-semita que, diariamente, o mundo árabe vai produzindo para consumo interno e externo.

Não é preciso visitar um país árabe, como eu já visitei, para perceber o fato. Basta consultar um sítio na internet (MEMRI - The Middle East Media Research Institute) para ler, em inglês, o que os jornais e as televisões árabes dizem em árabe. De acordo com a sensibilidade literária local, os judeus são, normalmente, seres "vingativos", "sujos", "parasitas" e agentes de "corrupção", "contaminação" e "morte". Um exemplo? A 17 de março de 1997, na Comissão para os Direitos Humanos das Nações Unidas, Nabil Ramlawi acusou as autoridades israelitas de infectarem 300 crianças palestinas com o vírus do HIV durante os anos da primeira intifada. A comunidade internacional, presumo, estava a dormir e a roncar: o "espanto" e o "choque" ainda não tinham começado. Ou, então, achou “normal” acusações de genocídio.

E, de fato, “normal” são: com espantosa regularidade, jornais egípcios ou jordanos acusam as autoridades israelitas de produzirem doces com o objetivo de matar crianças e corromper sexualmente as mulheres. Fertilizantes usados na fruta também acabam por esterilizar os homens árabes, que comem uma laranja ou uma banana na maior das inocências másculas. E, em matéria conspirativa, o 11 de setembro forneceu amplo material. De acordo com a imprensa árabe, no dia em que as Torres foram atacadas, 4000 judeus não foram trabalhar. Gripe súbita? Preguiça matinal? Nada disso. Eles foram antecipadamente avisados pela Mossad, os serviços secretos israelitas, para que não comparecessem nas Torres. O próprio Ariel Sharon, aliás, também foi avisado para não viajar para Nova York no dia 11 de setembro. No dia 11 de setembro, os serviços secretos israelitas iriam telecomandar dois aviões (vazios) para que eles iniciassem o definitivo confronto entre o Ocidente e o mundo árabe. E etc., e etc., e etc.

Pergunta: de onde veio esta loucura? A pergunta está mal formulada. O anti-semitismo árabe não é produto de uma doença mental. É, coisa pior, uma herança, uma pesada herança, uma grotesca herança do nosso próprio anti-semitismo ocidental. Não é possível estabelecer no tempo as origens intelectuais do anti-semitismo moderno. Mas existe um documento --obviamente, forjado-- que teve um papel arras! ador neste processo. Falo, como é evidente, dos "Protocolos dos Sábios do Sião", que as autoridades czaristas fabricaram na Rússia em finais do século 19 para "provar" que os judeus estavam dispostos a conquistar o mundo.

Foi um "best-seller" na época, permitiu incontáveis brutalidades no império russo e rapidamente viajou para o Ocidente --sobretudo para a Alemanha-- onde floresceu com vigor. E não apenas na Alemanha: se as boas ideias viajam com o vento, as más ideias viajam com a luz. Ainda na década de 1930, pelas mãos de Muhammad Amin al-Husseini (o mufti de Jerusalém, uma espécie de governador local), os "Protocolos" foram recebidos com entusiasmo assassino. O mufti de Jerusalém tinha ligações privilegiadas com o Terceiro Reich, sobretudo com Himmler, e fez da eliminação judaica no Oriente Médio um programa político. O ódio, que o Ocidente produziu, criava finalmente o moderno anti-semitismo árabe. Que continua vivo e bem vivo.

Hoje, quando vocês entram numa das livrarias locais, em Teerã ou no Cairo, é possível comprar os "Protocolos", levados a sério como historiografia séria. No Egito, uma novela baseada nos "Protocolos" foi adaptada à tv, com um elenco de 400 atores e orçamento digno de Hollywood: as donas de casa choraram com emoção perante a história pérfida de como os judeus pérfidos sempre desejaram subjugar o mundo. E livros como "Mein Kampf", o libelo ignaro de Hitler que é uma emanação dos "Protocolos" e que justificou as limpezas rácicas posteriores a 1933, é um sucesso de vendas mesmo em países mais ocidentalizados, como a Turquia. Escuso de dizer que vocês não encontram "A Lista de Schindler" nas locadoras árabes. O filme de Spielberg é perigosíssimo para a cultura indígena e, precisamente por isso, banido pelas autoridades oficiais. O Holocausto, o primeiro Holocausto, nunca existiu.

Mas o segundo talvez exista. A expressão não é minha. A ideia de um "segundo Holocausto" foi sugerida por Ron Rosenbaum no "The New York Observer", em abril de 2002. Para Rosenbaum, o anti-semitismo árabe atual ganha contornos muito próximos com a Alemanha nazista na década de 1930 e, cedo ou tarde, acabará por proporcionar novos espectáculos de horror. Só que, escreve Ronsebaum, desta vez haverá uma "vantagem" para os criminosos: ao contrário do que sucedeu na Segunda Guerra Mundial, em que uma poderosa máquina administrativa e bélica teve de "concentrar" os judeus da Europa em campos para o efeito, desta vez os judeus do mundo, ou uma parte significativa deles, já se encontram "concentrados": no Estado de Israel, obviamente --e o termo "concentrar" ganha aqui contornos sinistros.

Sinistros e reais: o Irã não descansará enquanto não tiver uma arma nuclear nas mãos. E, ao contrário do que se pensa, cometer o impensável não é uma questão cinematográfica: o desejo de exterminar Israel tem sido recorrente desde 1948, ano da fundação. Aliás, tem sido recorrente muito antes da formação do Estado judaico.

Karl Marx, plagiando Hegel, escreveu um dia que a história se repete: primeiro, como tragédia; depois, como farsa. Marx estava certo sobre o acessório, errado sobre o essencial. A história se repete, sim: primeiro como tragédia; mas depois, como tragédia ainda maior.

João Pereira Coutinho, 29, é colunista do jornal português "Expresso". Reuniu seus artigos no livro "Vida Independente: 1998-2003". Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

(Foto de Ricardo Meirelles)

E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

Um comentário:

Rodrigo disse...

Acredito que o artigo levanta alguns pontos interessantes mas infelizmente se coloca numa defensiva cega, ignorando as atrocidades cometidas pelo estado de israel, todo seu investimento militar, e ofensivas nas quais muitos territórios puderam ser agregados a seu estado, como o próprio "odiador de judeus" o Egito. Que tal pararmos de fazer o mesmo joguinho e não mais vestir ninguém de vilão. Aliás o próprio Spielberg fez questão de relativizar estas questões no filme Munique. Que por sinal acho que aborda o conflito de forma humana e mais pormenorizada do que o artigo.

Leia-se de forma geral, pois não se compara em sua totalidade uma rtigo com um filme, mas sim discursos que estão dispostos entre estes.