19 fevereiro 2007

POR UMA EXPERIENCIA RELIGIOSA

Por Rogério Silva
Freud tem um interessante texto que apresentou as consequências de uma entrevista dada ao jornalista teuto-mericano G. S. Virec que o indaga sobre a sua crença na religião durante uma visita sua aos Estados Unidos . Por conta disso recebeu uma carta de um médico americano.
Nesta carta o medico fica impressionado com a resposta dada por Freud sobre sua crença na sobrevivência da personalidade após a morte. Simplesmente ele respondeu: “Não penso no assunto”.
Relata o médico que ao passar por uma sala de dessecação deparou com o cadáver de uma velhinha de rosto suave que o fez pensar: “Não existe Deus; se existisse, não permitiria que essa pobre velhinha fosse levada a sala de dissecação.” O sentimento que experimentou da visão na sala de dissecação fizera-lhe decidir a não mais continuar indo à igreja. Há muito já nutria dúvidas a respeito das doutrinas do cristianismo.
Enquanto ele meditava sobre o assunto, uma voz falou-lhe à alma que ele deveria considerar o passo que estava prestes a dar. Seu espírito replicou a essa voz interior: “Se eu tivesse a certeza de que o cristianismo é verdade e que a Bíblia é a Palavra de Deus, então eu os aceitaria.”
No decorrer das semanas seguintes, Deus tornou claro à sua alma que a Bíblia era Sua Palavra, que os ensinamentos a respeito de Jesus Cristo eram verdadeiros e que Jesus era nossa única salvação. Após uma revelação tão clara, ele passou a aceitar a Bíblia como sendo a Palavra de Deus, e Jesus Cristo, como seu Salvador pessoal. Desde então. Deus Se revelou a si por meio de muitas provas infalíveis, acrescentou.
Com isso ele implora ao ‘irmão na medicina’ para refletir sobre esse tema por considerá-lo com a mente aberta, pois aí Deus lhe revelaria a verdade à sua alma como fez com ele e com tantos outros. Freud respondeu polidamente, dizendo que ficava contente em saber que essa experiência o havia capacitado a manter sua fé. Quando a ele, Deus não fizera o mesmo. Nunca lhe permitira escutar sua voz e se, devido a sua idade, não se apressasse, não seria sua culpa se permanecesse até o fim da vida como era agora— ‘an infidel jew’ (um judeu infiel).
Em resposta, o médico garantiu-lhe que ser judeu não constituía obstáculo no caminho para a fé verdadeira e informou que preces estavam sendo convictamente endereçadas a Deus, a fim de que lhe concedesse a ‘fé para crer’.
A experiência religiosa do colega americano forneceu a Freud substância para reflexão. Provocou-lhe uma certa tentativa de interpretação baseada em motivos emocionais, pois sua experiência é, em si mesma, enigmática, e baseada numa lógica particularmente ruim. Deus, como bem sabemos, permite que aconteçam horrores nada semelhantes à remoção para a sala de dissecação do cadáver de uma velhinha de aparência agradável. Isso é verdade desde sempre, e também deve ter sido enquanto o médico americano conduzia seus estudos. Tampouco, como estudante de medicina, pôde ficar tão abrigado do mundo, a ponto de nada conhecer de tais males. Por que, então, sua indignação contra Deus irrompeu precisamente ao receber essa impressão específica na sala de dissecação?
Para Freud acostumado a encarar analiticamente as experiências internas e as ações dos homens, a explicação é muito óbvia — tão óbvia que, na realidade se insinuou na sua lembrança. Certa vez, quando se referia à carta de seu piedoso colega em um debate, disse que ele escrevera que o rosto da mulher morta fizera-o lembrar-se do rosto de sua própria mãe. Na realidade, essas palavras não constavam de sua carta e uma curta reflexão foi para mostrar que elas não teriam mesmo a possibilidade de estar lá. Mas essa é a explicação a que somos irresistivelmente forçados por sua descrição afetuosamente enunciada da velhinha de rosto suave. Isso explica a fraqueza de julgamento demonstrada no jovem médico pela sua emoção despertada com a lembrança de sua mãe. É difícil fugir ao mau hábito psicanalítico de apresentar como prova pormenores que também permitiriam explicações mais superficiais — e a tentação de recordar o fato de que o colega se dirigiu-se a ele como ‘irmão na medicina’. O que se supõe é que foi assim que as coisas aconteceram. A visão de um cadáver de mulher, nu ou a ponto de ser despido, recordou ao jovem sua mãe. Despertou nele um anseio pela mãe que se originava de seu complexo de Édipo, e isso foi imediatamente completado por um sentimento de indignação contra o pai. Suas idéias de ‘pai’ e de ‘Deus’ ainda não se tinham separado inteiramente, de modo que seu desejo de destruir o pai podia tornar-se consciente como dúvida a respeito da existência de Deus e procurar justificar-se aos olhos da razão como indignação com o mau trato dado a um objeto materno. Naturalmente, é típico do filho considerar como mau trato o que o pai faz à mãe nas relações sexuais. O novo impulso, deslocado para a esfera da religião, constituía apenas uma repetição da situação edipiana e, consequentemente, logo se defrontou com uma sorte semelhante, ou seja, sucumbiu a uma poderosa corrente oposta. Durante o conflito real, o nível do deslocamento não foi sustentado: não há menção de argumentos em justificação de Deus, não nos é dito quais foram os sinais infalíveis pelos quais Deus provou sua existência ao que duvidava. O conflito parece ter-se desdobrado sob a forma de uma psicose alucinatória: escutaram-se vozes interiores que enunciaram advertências contra a resistência a Deus. Mas o resultado da luta foi mais uma vez apresentado na esfera da religião, e era de um tipo predeterminado pelo destino do complexo de Édipo: submissão completa à vontade de Deus Pai. O jovem tornou-se crente e aceitou tudo o que desde a infância lhe havia sido ensinado sobre Deus e Jesus Cristo. Tivera uma experiência religiosa e experimentaria uma conversão.
Tudo isso é tão simples e tão direto que não se pode deixar de perguntar se pela compreensão desse caso lançamos qualquer luz sobre a psicologia da conversão em geral. O ponto que nossa observação presente coloca em relevo é justamente a maneira pela qual a conversão se ligou a um evento determinante específico, o qual fez com que o ceticismo do indivíduo brilhasse uma última vez, antes de se extinguir finalmente.

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