12 novembro 2010

UM SUPOSTO PLÁGIO


Um e-mail de Marcio* dirigido a um certo amigo (eu recebi por e-mail).



Acho que você vai gostar. O Ferreira Gullar anda dizendo cada coisa! A última foi essa acusação (pouco honesta, inclusive) de plágio. Andou atacando a reforma que humanizou a psiquiatria no Brasil e deu uns apoios "esquisitos".

Há alguma beleza no que aí vai e, se achar digno, passe adiante na sua rede. Não tenho muitos amigos capazes de apreciar o que aí vai. Com um abraço e lembranças a todos, Márcio




CARTA ABERTA AO POETA F. GULLAR! (sobre uma polêmica em torno de um SUPOSTO plágio)

Quem duvida, poeta, que você é o maior poeta vivo do Brasil. Temos grandes letristas (que não deixam de ser poetas), mas o herdeiro de nossa muito rica poesia do século XX todos reconhecem em você.

Isso, entretando, não lhe confere o monopólio da inspiração poética nem o direto de acusar de plágio alguém que teve uma inspiração, digamos assim, parecida com a sua. O ataque que você tem desenvolvido contra o compositor O. Montenegro não me parece estar de acordo com a sua reconhecida generosidade. Além disso, convenhamos, as semelhanças entre seu poema e o do compositor compartilham apenas a inspiração poética:

"Uma parte de mim/é todo mundo/outra parte é ninguém:/fundo sem fundo" (Traduzir-se F. Gullar).

"Porque metade de mim é o que eu grito/Mas a outra metade é silêncio..." (O. Montenegro)

Como você sabe melhor do que ninguém, a poesia é, antes de tudo, a palavra (Mallarmée) e não o tema ou idéia em si. O ser/estar dividido é quase uma condição para a poesia, não é mesmo? Esse tema da divisão interior é muito recorrente na poesia e você não foi o primeira a tratar dele.

Fiquei pensando em como M. Bandeira reagiria à letra do samba de M. da Vila, comparando-o ao seu:

"Sonhei ter sonhado/Que tinha sonhado/Em sonho lembrei-me/De um sonho passado/O de ter sonhado/Que estava sonhando/Sonhei ter sonhado/Ter sonhado o quê?/Que tinha sonhado/Estar com você..." (TEMAS E VOLTAS, Bandeira)

"Sonhei/Que estava sonhando um sonho sonhado/O sonho de um sonho/ Magnetizado.../Sonho meu/Eu sonhava que sonhava..." (M. da Vila)

Como se pode ver, há muito mais semelhanças, e não apenas de inspiração temática.

Não resisto a imaginar como reagiria o "bardo de Recife" ao ler estes versos. Certamente, perguntaria ao sambista (também grande poeta) se conhecia o seu poema. Haveria duas possibilidades: se a resposta fosse SIM, Bandeira ficaria muito feliz em ver como o seu poema teria inspirado tanta poesia e, mais ainda, pela beleza da música. Talvez até dissesse (ele que adorava ser musicado) "AH! Se eu tivesse essa inspiração musical...!!!" Ele, que considerava a música a mais suprema dentre todas as artes certamente reverenciaria esse artista do povo.

Se a resposta fosse NÃO, talvez gostasse de ver como a inspiração pode atingir dois poetas com a sua mesma "espada de fogo", especialmente em relação ao sentimento de que esta vida é nada mais do que um sonho.

Quem sabe ainda se não lembraria dos versos de A. de Musset: "O solitude! O pauvreté! " que o inspiraram a escrever "Ó pobreza! Ó solidão!" (Cantilena).

E da criptomnesia ou plágio inconsciente, você já ouviu falar disso, poeta F. Gullar?! Esquecemos datas, nomes...mas o sentimento que algum poema nos causou pode permanecer e até nos inspirar, quer dizer aos poetas, um novo poema, sem qualquer intenção de plágio. Não foi o caso, mas essa possiblidade sempre existe e deveria ser motivo de orgulho e não de acusação. Sempre há tempo para pedir desculpas.

*Márcio Amaral, vice-diretor do Instituto de psiquiatria da UFRJ

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