
O Globo – prosa & verso – Sábado 21 de agosto de 2010
[FILOSOFIA]
Escrituras e diferenças
Obra clássica de Derrida ganha sua primeira edição integral em português
A escritura e a diferença, de Jacques Derrida. Tradução de Perola de Carvalho, Maria Beatriz marques, Nizza da Silva e Pedro Leite Lopes. Editora perspectiva, 438 páginas. R$90,00
Rafael Haddock-Lobo
Em 1967, o filósofo francês Jacques Derrida lançava, ao mesmo tempo, três livros: "Gramatologia", "A escritura e a diferença" e "A voz e o fenômeno". Quando perguntado sobre qual seria sua primeira obra, ou como compreendermos a arquitetura de seus livros, o filósofo respondera que estes três livros remetem uns aos outros, numa espécie de labirinto que, mais tarde, caracterizaria o que hoje conhecemos sob o nome de "desconstrução" - termo cunhado para designar justamente o pensamento de Derrida.
Podemos então tentar compreender o impacto de uma obra inaugural como a de Derrida, que se apresenta, de uma só vez, com três grandes golpes na História da Filosofia. E um destes grandes golpes aparece agora pela primeira vez em português em versão integral: a editora Perspectiva reeditou a tradução de "A escritura e a diferença", numa edição revista e ampliada que inclui importantes artigos estranham ente excluídos das outras edições.
Se a edição anterior trazia artigos de Derrida sobre Freud, Artaud, Edmond Jabes, Husserl e sobre o estruturalismo, ou seja, sobre grandes nomes que inspiraram a escrita derridiana, ainda assim pecava por deixar de lado três grandes textos: "Cogito e história da loucura" (um debate com Foucault), "Violência e metafísica" (o primeiro grande ensaio filosófico sobre Lévinas) e "Da economia restrita à economia geral" (sobre Bataille). Podemos entender, com isso, que essa nova edição, fiel à francesa, retrata de modo bem mais justo o que pode ter sido a dimensão desta obra no final da década de 1960, travando não apenas um diálogo com a psicanálise, com as artes e com o estruturalismo, mas também com seus contemporâneos como Foucault e Lévinas, por exemplo.
Não é incomum vermos associados à ideia de "desconstrução" uma atitude negativa, de crítica mal-intencionada, de esvaziamento dos discursos. Ou mesmo, como se faz também para a noção de pós-modernidade, a indicativa de um discurso pouco rigoroso em que tudo é permitido, sem o menor critério de avaliação. Nesse sentido, para perceber o quão infundadas e ignorantes são estas críticas, um livro como "A escritura e a diferença" parece exemplar. Exemplar no estrito sentido de servir como exemplo do que é isto que se convencionou chamar de desconstrução, um pensamento que quer fazer justiça à singularidade de . cada pensamento, sem pretender reduzi-lo a fórmulas, sentenças ou sintagmas.
Exemplar, também, é esse vasto conjunto de autores que são nomeados no corpo da obra derridiana. Com isso, Derrida pretende mostrar que não é apenas uma a sua herança, que passeia por Nietzsche, Heidegger e Husserl, e nem apenas filosófica, pois indica também os nomes de Artaud, Lévi-Strauss, Saussure e Freud, entre outros. Com isso, o primeiro aspecto a se sublinhar é a assunção de que não há originalidade no pensamento, no sentido de que um pensador parte do nada e cria seu próprio sistema Cabe a ele então a tarefa de nomear sua herança, de mostrar o quão devedor é de cada pensamento, inaugurando o que podemos chamar de uma certa "ética da citação".
Mas isso não quer dizer que, então, cabe ao filósofo apenas repetir o que já foi dito, pois, como herdeiros, devemos sempre ir além de nossa herança. E isso justamente para sermos fiéis aos nossos mestres e não congelarmos seus pensamentos como algo já acabado - o que, para Derrida, seria matar nossos pais. Um exemplo maravilhoso disto é o artigo "Violência e metafísica" sobre o amigo e mestre Lévinas.
Derrida já dissera que Lévinas teria sido um dos grandes nomes da filosofia do século XX, e que, junto a Blanchot e a Heidegger, seria uma de suas principais fontes de inspiração, chegando a dizer que, "frente a um pensamento como este eu não tenho objeções". E este artigo publicado em "A escritura e a diferença", mas que data de 1964 marca uma recepção filosófica que pode ser vista como um marco nas leituras sobre Lévinas, que passa a adquirir uma dignidade filosófica que nenhum de seus contemporâneos, como Foucault e Deleuze, pareceu atribuir ao filósofo lituano. É, portanto, um texto de extrema homenagem, como atesta "Adeus a Emmanuel Lévinas", o discurso lido por Derrida no enterro do amigo e publicado décadas mais tarde - uma das mais belas obras da literatura filosófica.
Mas essa homenagem não deve se furtar à tarefa crítica que cabe à filosofia. E um dos traços de "Violência e metafísica" é a tentativa de mostrar o quanto Lévinas é devedor de Heidegger, de quem Lévinas declarava-se rival. E podemos perceber nesse movimento derridiano o que de fato é a atitude típica da desconstrução: se, por um lado, Derrida parece concordar com a crítica que Lévinas dirige a Heidegger, que é a base da fundamentação da ética levinasiana, por outro, ele pretende mostrar como estes argumentos de Lévinas estão sempre em uma certa dívida com Heidegger, pois têm sempre o filósofo alemão como ponto de partida.
Assim, enxergar Heidegger por detrás de Lévinas não é criticar Lévinas, mas sim deixar ver a herança que se encontra nas entrelinhas de seus textos. E esse tipo de argumento, que pode parecer antipático a alguns, mas que é uma certa tentativa de alargar a experiência democrática no pensamento, aparece em "A escritura e a diferença" também direcionada a Artaud, a Foucault, a Bataille e a tantos outros, tentando assumir não apenas as suas heranças, mas a de fazer marcar a diferença em cada escritura.
RAFAEL HADDOCK-LOBO é professor de filosofia da UFRJ, autor de ''Derrida e o labirinto de inscrições"
[FILOSOFIA]
Escrituras e diferenças
Obra clássica de Derrida ganha sua primeira edição integral em português
A escritura e a diferença, de Jacques Derrida. Tradução de Perola de Carvalho, Maria Beatriz marques, Nizza da Silva e Pedro Leite Lopes. Editora perspectiva, 438 páginas. R$90,00
Rafael Haddock-Lobo
Em 1967, o filósofo francês Jacques Derrida lançava, ao mesmo tempo, três livros: "Gramatologia", "A escritura e a diferença" e "A voz e o fenômeno". Quando perguntado sobre qual seria sua primeira obra, ou como compreendermos a arquitetura de seus livros, o filósofo respondera que estes três livros remetem uns aos outros, numa espécie de labirinto que, mais tarde, caracterizaria o que hoje conhecemos sob o nome de "desconstrução" - termo cunhado para designar justamente o pensamento de Derrida.
Podemos então tentar compreender o impacto de uma obra inaugural como a de Derrida, que se apresenta, de uma só vez, com três grandes golpes na História da Filosofia. E um destes grandes golpes aparece agora pela primeira vez em português em versão integral: a editora Perspectiva reeditou a tradução de "A escritura e a diferença", numa edição revista e ampliada que inclui importantes artigos estranham ente excluídos das outras edições.
Se a edição anterior trazia artigos de Derrida sobre Freud, Artaud, Edmond Jabes, Husserl e sobre o estruturalismo, ou seja, sobre grandes nomes que inspiraram a escrita derridiana, ainda assim pecava por deixar de lado três grandes textos: "Cogito e história da loucura" (um debate com Foucault), "Violência e metafísica" (o primeiro grande ensaio filosófico sobre Lévinas) e "Da economia restrita à economia geral" (sobre Bataille). Podemos entender, com isso, que essa nova edição, fiel à francesa, retrata de modo bem mais justo o que pode ter sido a dimensão desta obra no final da década de 1960, travando não apenas um diálogo com a psicanálise, com as artes e com o estruturalismo, mas também com seus contemporâneos como Foucault e Lévinas, por exemplo.
Não é incomum vermos associados à ideia de "desconstrução" uma atitude negativa, de crítica mal-intencionada, de esvaziamento dos discursos. Ou mesmo, como se faz também para a noção de pós-modernidade, a indicativa de um discurso pouco rigoroso em que tudo é permitido, sem o menor critério de avaliação. Nesse sentido, para perceber o quão infundadas e ignorantes são estas críticas, um livro como "A escritura e a diferença" parece exemplar. Exemplar no estrito sentido de servir como exemplo do que é isto que se convencionou chamar de desconstrução, um pensamento que quer fazer justiça à singularidade de . cada pensamento, sem pretender reduzi-lo a fórmulas, sentenças ou sintagmas.
Exemplar, também, é esse vasto conjunto de autores que são nomeados no corpo da obra derridiana. Com isso, Derrida pretende mostrar que não é apenas uma a sua herança, que passeia por Nietzsche, Heidegger e Husserl, e nem apenas filosófica, pois indica também os nomes de Artaud, Lévi-Strauss, Saussure e Freud, entre outros. Com isso, o primeiro aspecto a se sublinhar é a assunção de que não há originalidade no pensamento, no sentido de que um pensador parte do nada e cria seu próprio sistema Cabe a ele então a tarefa de nomear sua herança, de mostrar o quão devedor é de cada pensamento, inaugurando o que podemos chamar de uma certa "ética da citação".
Mas isso não quer dizer que, então, cabe ao filósofo apenas repetir o que já foi dito, pois, como herdeiros, devemos sempre ir além de nossa herança. E isso justamente para sermos fiéis aos nossos mestres e não congelarmos seus pensamentos como algo já acabado - o que, para Derrida, seria matar nossos pais. Um exemplo maravilhoso disto é o artigo "Violência e metafísica" sobre o amigo e mestre Lévinas.
Derrida já dissera que Lévinas teria sido um dos grandes nomes da filosofia do século XX, e que, junto a Blanchot e a Heidegger, seria uma de suas principais fontes de inspiração, chegando a dizer que, "frente a um pensamento como este eu não tenho objeções". E este artigo publicado em "A escritura e a diferença", mas que data de 1964 marca uma recepção filosófica que pode ser vista como um marco nas leituras sobre Lévinas, que passa a adquirir uma dignidade filosófica que nenhum de seus contemporâneos, como Foucault e Deleuze, pareceu atribuir ao filósofo lituano. É, portanto, um texto de extrema homenagem, como atesta "Adeus a Emmanuel Lévinas", o discurso lido por Derrida no enterro do amigo e publicado décadas mais tarde - uma das mais belas obras da literatura filosófica.
Mas essa homenagem não deve se furtar à tarefa crítica que cabe à filosofia. E um dos traços de "Violência e metafísica" é a tentativa de mostrar o quanto Lévinas é devedor de Heidegger, de quem Lévinas declarava-se rival. E podemos perceber nesse movimento derridiano o que de fato é a atitude típica da desconstrução: se, por um lado, Derrida parece concordar com a crítica que Lévinas dirige a Heidegger, que é a base da fundamentação da ética levinasiana, por outro, ele pretende mostrar como estes argumentos de Lévinas estão sempre em uma certa dívida com Heidegger, pois têm sempre o filósofo alemão como ponto de partida.
Assim, enxergar Heidegger por detrás de Lévinas não é criticar Lévinas, mas sim deixar ver a herança que se encontra nas entrelinhas de seus textos. E esse tipo de argumento, que pode parecer antipático a alguns, mas que é uma certa tentativa de alargar a experiência democrática no pensamento, aparece em "A escritura e a diferença" também direcionada a Artaud, a Foucault, a Bataille e a tantos outros, tentando assumir não apenas as suas heranças, mas a de fazer marcar a diferença em cada escritura.
RAFAEL HADDOCK-LOBO é professor de filosofia da UFRJ, autor de ''Derrida e o labirinto de inscrições"
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