26 dezembro 2008

A CIRCULARIDADE DO SER – UM FRAGMENTO*

O presente texto trata de reflexões teóricas de uma experiência clínica. Os dados reveladores e identificatórios foram alterados no sentido de preservar possíveis personagens.

Mariana procurou o analista porque desejava atendimento. Dois dias antes da primeira sessão, Carlos, seu marido, ligou e pediu para vir no seu lugar. A mulher marcou, mas foi ele quem veio na primeira vez. Ela veio na sessão seguinte e continuou em análise.

Um marcou e o outro veio à sessão. Como pensar isso tecnicamente? Ficar preso nessa questão é colocar-se no lugar da psicologia do eu. Essa especificidade é esclarecida pelo estatuto atribuído por Lacan à ética da psicanálise, noção que é inseparável da "barra", da "divisão". Num certo sentido, vai permitir a distinção do "fora" e do "dentro", do social. Por conseguinte, ideológico, do que é propriamente do sujeito, o desejo que, como tal, se distingue da demanda e da necessidade. Esta separação do social relaciona-se de alguma maneira a algo como se parire, processo que alude á separação, a uma divisão no sujeito e não entre o sujeito e o social. Fala da produção de algo novo, à criação. Implica o abandono das relações do sujeito com os "serviços dos bens", isto é, o abandono de posições marcadas pela defesa de interesses, econômicos ou de qualquer outra natureza, previamente definidos socialmente. Enfim, um se parire que é quase o oposto do que a sociologia chama de processo de socialização. Este sim tem uma função que se aproxima, pelos efeitos que produz, daquela que corresponde à ideologia em Althusser: a constituição dos "sujeitos ideológicos". Neste sentido preciso, que esta ética vai servir de referência fundamental a critica ideológica, que Lacan, em diferentes momentos, dirigiu ao que, pejorativamente, considerava como "psicologia do eu". Uma perspectiva que fixava o "sujeito" ao social e, portanto, à ideologia e, neste sentido, funcional à sociedade e ao "serviço dos bens".

O importante é, pois, saber quem pagará a análise. É indiferente de onde vem o pedido. Também é indiferente de onde vem o dinheiro. Assim se faz psicanálise. Se quem vem, entra, traz uma questão, o analista está ali para receber esse discurso. Para marcar esse lugar. O que está em jogo é o desejo do analista. Receber ou não receber. Se receber, vai escutar para poder aprender. Alguém ligou e ele atendeu primeiro outro. Sempre teremos uma desculpa. Qualquer desculpa, tanto faz. Mas esse é um lugar da psicanálise. O primeiro caso mais escrito de Freud foi o caso Dora. O pai dela tinha se tratado com ele de sífilis e foi procurá-lo. A filha deixou um bilhete dizendo que ia se matar. Foi ele quem foi. É preciso ouvir o que vem e na ordem que vem. Primeiro vem um, depois vem outro.

Heráclito parte do princípio de que tudo é movimento, e que nada pode permanecer estático. "Panta rhei", sua "máxima", significa "tudo flui", "tudo se move", exceto o próprio movimento. Ele exemplifica, dizendo que não podemos entrar duas vezes no mesmo rio, porque, ao entrarmos pela segunda vez, não serão as mesmas águas que estarão lá, e já não seremos a mesma pessoa. De fato, a biologia veio a descobrir, muito mais tarde, que nossas células estão em constante renovação, e isso é uma mudança.

Ela é artesã e o marido também. O marido foi professor dela e ele tem uma oficina. Agora ela está parada; disse que não tem mais cabeça para fazer esse trabalho.

Mas vamos ao caso. Ela chega e pós um breve silêncio começa a falar:

– Oi, cheguei! Cheguei cedo. Não tem que ficar esperando um pouquinho não?

Fico em silêncio esperando para ver o que aparece.

- ... Pois é, estou aqui. ... Você está aí pra quê? Não fala nada não? Não sei o que vou falar, estou nervosa, ufa!

– Está nervosa por quê? Pergunto.

– Não sei, eu sou assim meio agitada. Eu vim um pouco mais cedo e fiquei ali falando com o guardador de carros. Muito legal ele, sabe? Fiquei conversando um tempo com ele. Ele é uma pessoa bacana. Trocamos figurinha e acabamos tomando um chope. É uma pessoa legal.

– Ele é legal. Disse para demonstrar atenção.

– Ele também me acha legal, eu sou bem relacionada. As pessoas me acham legal, me dou bem com as pessoas. Ele gostou, falei com ele, perguntei umas coisas lá, me ajudou a estacionar o carro e fomos tomar um chope. Eu falei para ele: – olha você vai me ver aqui muitas vezes, vou voltar aqui muitas vezes. ... Carlos veio aqui? Ele estava me enchendo o saco; eu marquei com você e ele estava me enchendo o saco. Aí eu disse pra ele: – vai lá você, vai se tratar um pouco. Ele veio na frente; achei que era melhor. Pois é, ele aporrinha pra chuchu; agora não me deixa fazer as coisas, não me deixa tomar uma cerveja. Quando bebo fico muito animada e ele fica me proibindo. Nós tivemos um problema que você já deve saber, com nosso filho.

- Problema? Perguntei.

– Toda aquela história, né? Olha, eu fumei muita maconha, tomei muitas drogas desde garotinha e, durante a gravidez, eu parei. As pessoas falavam que ia fazer mal e eu parei de me drogar. Mas eu tomei de tudo. E, aí, durante o parto foi tudo bem. O Carlos não parava de fumar maconha; fumava maconha o dia inteiro. E aí aquela história. Na hora em que o filho nasceu eu fiquei esperando. Bem, vão trazer o filho para mim, mas o filho some. Perguntei o que aconteceu, ele teve um problema respiratório com conseqüências e tive que fazer um tratamento. Os pezinhos, isso eu já tinha visto na ultra-sonografia, estavam virados para trás. Hoje ele já está bem, foi há um ano. Fez uma cirurgia, fisioterapia e tal e os pezinhos foram para o lugar. Mas um ano, um ano que estou nessa luta; não agüento mais, não nasci para ser mãe, não agüento mais. Um ano cuidando de criança, eu preciso da ajuda do Carlos, mas ele só fica me enchendo o saco, fuma maconha e agora eu não me deixa beber. É isso... Eu não nasci para ser mãe; de vez em quando eu quero sumir, quero fugir, quero ir embora, largar tudo isto. Largar o Carlos, largar filho, ele é pequenino. Agora que deu tudo certo...

– Agora que deu tudo certo você quer largar tudo. Pontuei.

– É, agora eu não agüento mais, estou precisando de umas férias. Estou pensando em me separar, estou pensando em sumir. Eu não agüento mais, quando nós brigamos, eu sou muito agitada. Sai na porrada, eu parto pra cima dele. Ele diz pra eu ficar calma. Fica calma nada. E a família não ajuda; muito sozinha muito sozinha hoje. Estou precisando de liberdade; de vez em quando pego o carro e vou para a estrada, bebo umas cervejas e vou parar lá no sítio da minha irmã. Aliás, desse sítio, na última vez nós fomos expulsos, eu e Carlos, nós saímos na porrada. Ele ficou com ciúmes. Eu botei um short, a parte de cima de um biquíni e saí para ir à venda. Pronto, acabou o meu dia. Ele reclamou que isso não eram modos de vestir, eu disse que não é nada disso. Disse que ele tem que me entender, que isso era besteira...

– O que é que você estava procurando? Perguntei.

– Eu fui comprar cigarro em uma venda. A gente estava indo pro sítio, eu parei o carro e fui comprar cigarro. Ele vai e acaba com o meu dia... É complicado, não? A vida tá uma complicação. Eu não sei se quero ficar mais com ele, mas não posso abandonar a criança.

- Não sabe se não quer ficar mais com quem?

– Com o Carlos. A coisa chegou a um ponto que eu não sei. A idéia era vender o nosso apartamento. Ele poderia comprar uma quitinete ou um quarto e sala para ele e eu iria morar em outro lugar, em uma casa, um sítio que eu consigo, eu acho. Minha irmã já disse que não quer ver mais a gente lá, depois do que a gente aprontou. Brigamos o tempo todo. A porrada come solta. Ela não quer mais. Eu cuido da criança, faço comida. Ele chega em casa e ainda reclama. Estou engordando, não consigo parar de comer, não sei o que faço. Mas, a vida é assim, não é?

– O que você espera de mim? Perguntei tentando um novo rumo no assunto.

– Que você possa me ajudar em bocadinho, não é? Vim até aqui.... Lá em casa está difícil. Não estou conseguindo levar essa situação sozinha, não. Quero saber o que você pode fazer. Bater um papo, trocar idéias. Já fiz umas terapias, mas não deram certo. Não gostei, não. Estou querendo ver se agora o senhor pode me ajudar.

Sempre que o paciente chega neste ponto é como se deixasse uma armadilha para o analista. O analista está ai para positivar. O que não gostou remete a uma comparação. Se o analista pergunta o que você não gostou, ele se coloca em disputa com o outro analista ausente. Então, a transferência vai ser de um tipo aonde ela não vai se dirigir a você, mas com uma diferença; o analista se coloca como o bom. O que você não gostou significa: eu vou me corrigir para você gostar.

Pensar no por que alguém nos procura, leva à pergunta o que é que essa pessoa quer de mim? O outro se quiser, se queixa ou deixa de se queixar. Deixa a pulsão ir positivamente. Quando focaliza o que não gostou, esse não é que vai conduzir. O não enquanto uma negativa, e não um não enquanto positivo. Acredito que esse não seja o melhor modo, mas é um modo de se organizar. Eu pensaria que isso de pergunta, para o inconsciente, não contribui. Eu aprendi que quando a gente se coloca e diz o que não gostou no outro, a gente diz: eu é que vou te servir. Aí a pulsão não vai poder instalar um não comigo; não só com os outro, eu sou o legal.

Não importa estabelecer com o paciente um vinculo de aceitação paciente analista. O que talvez se deva escutar é: eu procuro e não encontro; não preciso saber o que.

Com isso se estabelece um gancho libidinal: o rapaz do estacionamento, a cerveja, vai voltar. O rapaz do estacionamento pode se preparar para ver as coxas por baixo do short etc. É isso que ela está contando.

– Vou te mostrar umas fotos do meu filhinho. Aqui as fotos dele; não é bonitinho? Está bom, quando é que eu marco outra sessão?

Marcar a próxima, bem como receber no fim da sessão é importante para esse tipo de paciente que não apresenta uma certa regularidade.

– Ué? Não vou precisar esperar aqui em baixo não, pra subir? É direto? Que bom, está geladinho aqui. Fala alguma coisa aí; ... Você trabalha com criança? Estou vendo uma casinha ali. Estou vendo ali uma casinha de boneca.

– Você falou que queria morar numa casinha. Seu marido numa quitinete e você em uma casinha...

– Quanto tempo a gente ainda tem de sessão? Quanto tempo é? Você fica olhando para aquele relógio ali?

O analista fica calado esperando que as últimas coisas faladas retumbem dentro dela em busca de algum sentido.

– É, não tenho o que falar. Carlos me encheu o saco de novo; parti pra cima dele. Não queria me deixar sair e eu parti pra cima dele. ... Quero te contar uma coisa que não contei pra ninguém. To saindo com um cara, um amante, amigo de infância e é muito bom, estou gostando bastante. Fico meio grilada de encontrar com ele, mas encontrei com ele e foi muito bom! Trepar é muito bom! Não sei em que vai dar isso; é um amigo de infância, a gente se encontrou e pronto. Não é só uma trepada. É bom ficar com ele. É. Às vezes tenho essa vontade de sair por aí, não é? Outro dia, peguei o carro, pequei meu filho e fui pro sítio. De lá, liguei pro Carlos: – olha, estou aqui, tá? De vez em quando dá vontade de pegar uma estrada e ir embora. Ele perguntou se estava tudo bem, se estava tudo tranqüilo. Eu disse que sim e fiquei lá um tempo. ... Ta na hora já? Quanto tempo você trabalha? É um bom lugar lá, eu gosto de vez em quando de dar uma saída; é muito difícil.

O analista se levanta para despedida.

– Então, sexta-feira estou aí, ta?

Antes da próxima sessão marcada, estou em casa e recebo um recado do Carlos:

– Olha, Mariana foi pra Terezopolis sozinha, foi assaltada, levou umas pancadas, chegou em casa bêbada e não pode ir à sessão; depois ela liga pra você.

Isso aconteceu na sexta-feira e, aí, eu liguei para ela no sábado e marquei outra sessão. Ela normalmente é super expansiva; chegou na sessão com o corpo cheio de hematomas e eu não perguntei diretamente o que aconteceu.

– Posso sentar ali? Sentou-se no chão.

– Quem te bateu? Perguntei com preocupação.

– Peguei o carro, fui encontrar com o Márcio. Ele esta saindo com outra mulher. Descobri que ele está saindo e ele confirmou. Eu sou casada, como é que posso me importar se ele está saindo com outra mulher? Mas eu me importei, fiquei com ciúme e parti pra cima dele. Levei porrada e estou cheia de hematoma. Aí, vim chegando depois em Nova Iguaçu, parei no sinal e um moleque me assaltou. Pegou o meu dinheiro. Bebi uma garrafa inteira de vodka. Não sei o que faço; sou casada, ele arrumou outra mulher. Eu sou ciumenta. Eu parto pra cima. Aí, quando bebo, fico com problema no estômago e fico dois dias na cama. Carlos me deu banho, me deu remédio. Eu fico lá, demoro um tempão pra levantar. Quando bebo acontece isso. Eu fui assaltada e nem tenho dinheiro pra te pagar hoje; posso pagar na próxima? Te pago a que eu faltei também.

– Levaram... Eu disse.

– É, levaram o que é meu. Eu sou grandona, sou forte.

Contardo Calligaris em Clínica Diferencial das Psicoses escreve sobre o automatismo dessas pessoas que estão em um lugar e, de repente, partem para outro, não podem ficar no mesmo lugar. No caso dela, ela já vem contando que tem uma pulsão insatisfeita que diz respeito ao guardador, e por aí logo entra o amigo e logo a repetição. Por isso é que não é necessário saber do lugar; interessa tudo, menos o casal. O que está interessando aqui é que ela repete com o amigo de infância a mesma coisa que ela tem com o marido. A posição do analista é escutar como essa subjetividade se faz; se é com Carlos ou com Marcio, sei lá com quem, ela é a grandona, ela fala de si própria e se reconhece como tal. E a outra coisa é pensar que tem um critério, que é mais lacaniano, que quando o sujeito se desloca nessa velocidade, se você simbolicamente está diante de um psicótico.

Há uma preocupação dela pelo fato de ter tomado drogas. Parentes e amigos diziam para ela que se drogou muito. Quando ela teve o filho com esse problema, as pessoas começaram a acusá-la em função da quantidade de drogas. Ela também fala de uma paixão da qual não está conseguindo dar conta. A relação com marido é alguma coisa que já acabou.


*Adaptação de um caso apresentado numa sessão de Mobilização Clinica da Formação Freudiana.

3 comentários:

Rodrigo disse...

Seu texto me lembrou da coluna do Contardo sobre o filme Vicky Cristina Barcelona, onde ele reforça um comentário sobre uma personagem que sofre de "insatisfação crônica"..

Agradeço pelo post, lerei outras vezes pra ver se pego melhor os conceitos.

r a c h e l disse...

Bom, hein? Que caso legal pra destrinchar... (embora tenha sentido pena de todos na história).
Saudades da Formação. Seu texto me deixou com mais saudade ainda.

Beijo, querido!

Rogério Silva disse...

Rachel
Pois então destrinchemos. O que apresento aqui tem sempre uma brecha para alguma opinião. O convite fica aberto.
obrigado pelo comentário
Beijo
rogério