19 fevereiro 2008

O VALOR DA AMIZADE

Por Rogério Silva

Chaim e eu no lançamento de seu livro "O coração distante" em 1994

Amigo é coisa pra se guardar

Debaixo de sete chaves

Dentro do coração

Assim falava a canção

Que na América ouvi

Mas quem cantava chorou

Ao ver seu amigo partir

Canção da America de Gil de Lucena e Milton Nascimento

Qual o valor da amizade? Para compreender isso teremos que invocar os Deuses do Olimpo e perguntar qual foi a real intenção do envio da caixa com os males humanos aos pobres mortais.

Prometeu então, garantiu aos humanos que iria ao Olimpo e roubaria o Fogo Sagrado dos Deuses e os daria aos mortais para que estes adquirissem o Poder Divino e se igualassem a eles.

Em retribuição a este roubo, os Deuses irados enviaram a bela Pandora, segurando uma caixa, de presente aos humanos. Por curiosidade, abriu-se a caixa para ver o que havia sido enviado do Olimpo.

Na atualidade, esta tarefa coube a outro imortal trazer o paradoxo da amizade. Queridos amigos, odiados amigos, foi a coluna apresentada na Revista do Jornal O Globo deste domingo, assinada por Chaim Samuel Katz.*

Chaim marca a amizade como a possibilidade de diferenciação que ela oferece a si e ao outro. Ele se baseia em Freud para explicar como as mais fortes relações familiares existentes, são as que se fazem em torno da autoridade e da função paternas. O grupo familiar estabelece como cada indivíduo conhece seu lugar na estrutura de parentesco. Antes mesmo de nascer, já existem posições e escolhas determinadas, ao menos de filho. Amor e ódio ocupam lugares com figuras e objetos determinados para atingir.

Para ele o que se conhece como família se funda nas relações de aliança, filiação e consangüinidade. Funciona como uma rede. Rede essa que obrigaria os afetos e as ligações. Ela não depende do nascimento imediato e fisiológico, mas é permanente, organizando-se em torno das relações familiares. Para a psicanálise, os afetos provem destas relações, que se organizam em torno de um evento não-sensível.

Eu ainda acrescentaria que para nós humanos, de família burguesa, humilde ou asilar, não importa, já nascemos também com uma crença em Deus; uma religião; uma profissão, um sexo – que não irá corresponder necessariamente com o biológico; um time para torcer; uma circuncisão e/ou um Bar Mitzvah; uma primeira comunhão; em algumas regiões da Índia, as meninas já nascem até com marido; etc. Uma escolha ulterior muitas vezes se torna difícil, graças aos reforços como as fotos como a camisa do time, do batismo, do Bar Mitzvah, etc. O pior reforço talvez seja uma reprovação como: “não faça isso que papai do céu castiga”. Obriga uma crença feita pelo medo. Talvez essa forma de “não-escolha” também influencie na relação de amizade.

Estão na linguagem dita popular, as formas mais diferenciadas de se organizar e sentir. Os apelidos mudam, de acordo com as relações afetivas, de poder e de interesse. Formam-se novas configurações familiares, novas configurações de amizade. Enquanto os irmãos e tias familiares serão sempre os mesmos na estrutura de parentesco, por "mais que os abandonemos e recusemos.” É preciso considerar novas ordens de famílias, onde um segundo casamento impõe novos manos e tias, e os casamentos homossexuais impõem dois pais masculinos ou duas mães femininas, mas que também "exigem" uma hierarquia de relações e afetos que tende a se perpetuar.

Não se pode perder de vista que qualquer laço libidinal, por mais distanciado e respeitoso que possa ser, quer possuir e anexar o próximo, anular seu estatuto atual. Contudo, o amigo pretende se criar e transformar a si próprio. A amizade precisa suportar diferenças extremas, o inusitado que se apresenta como adversidade; e não espera que só venham formas de um único amor para unir os amigos. As amizades são feitas de um material mais duro, de diferenças e de dissenções.

* Chaim Samuel Katz é psicanalista e imortal da Academia Brasileira de Filosofia

2 comentários:

Anônimo disse...

Belo artigo sobre amizade. O último parágrafo resume bem o sentimento que é a amizade!

camila disse...

Não se pode perder de vista que qualquer laço libidinal, por mais distanciado e respeitoso que possa ser, quer possuir e anexar o próximo, anular seu estatuto atual. Contudo, o amigo pretende se criar e transformar a si próprio. A amizade precisa suportar diferenças extremas, o inusitado que se apresenta como adversidade; e não espera que só venham formas de um único amor para unir os amigos. As amizades são feitas de um material mais duro, de diferenças e de dissenções.