30 dezembro 2007

ALEGRIA E FELICIDADE NA PSICANÁLISE

Por Emanuel Carneiro leão

Chaim Katz: A anti-felicidade, o desamparo e mal estar ontológicos dominam a psicanálise carioca; e o tema do fórum da Formação Freudiana do Rio de Janeiro este ano é alegria e felicidade na Psicanálise. Será isto possível? É, e achei que para abrir nosso "ano" hoje (04/03/1999), ninguém melhor do que Carneiro Leão, meu professor; ele falará o tempo que achar necessário, depois quem quiser perguntar, faça-o, livremente. Tomei a liberdade de gravar, porque nos ajudará a organizar um outro tipo de programa, desde a fala do Emmanuel. Quem Emmanuel é quem sabe sabe, quem não sabe ainda não merece. Então, não vou apresentá-lo.


Emmanuel Carneiro Leão: Boa noite meus amigos. Comovido com as palavras do Chaim, que é meu amigo desde que eu cheguei aqui no Rio pela primeira vez. Por isso é que tem essas palavras tão carregadas, tão de história, tão de uma amizade antiga, carioca, inaugural.

Bom, que essa temática é muito importante da história do pensamento ocidental, ela tem um peso de organização fundamental, mas por isso, como são as questões fundamentais e essenciais, são questões de desafio e não de solução. Quer dizer, não são respostas a essa pergunta e a esse questionamento que levaram o comportamento social e individual do Ocidente a caminhar para frente, a adiantar-se, a progredir, mas são justamente os obstáculos e a dificuldade, a provocação e o desafio dessas questões fundamentais que o fazem. Esta é minha modesta contribuição e colaboração aqui, nessa aula inaugural para a qual eu fui convidado, e pelo que agradeço de todo coração. Vai se restringir a abrir algumas dimensões de interrogação, a aprofundar o desafio e a provocação que nos trazem essas duas palavras articuladas por um e: felicidade e alegria, como questionamento filosófico. Anotei aqui algumas dimensões, alguns desdobramentos da questão e a primeira, digamos, experiência com que nos deparamos com essa questão da felicidade e da alegria é de que, sendo fundamentais as contribuições que essas duas palavras nos trazem, elas estão sempre sujeitas a serem tratadas com grande ligeireza. Significa o risco de um relacionamento apressado, ligeiro, e um açodamento superficial é muito grande quando se trata de felicidade e de alegria.

Por isso, se perguntarmos quais são as respostas que ao longo da evolução das biografias ocidentais e das histórias de comunidades ocidentais vêm sendo dadas à pergunta: o que é que é a felicidade, o que é que é-alegria?, observaremos que essa resposta tem sido de uma espantosa superficialidade nesse século. Por que? Porque questões fundamentais se acompanham desse risco de superficialidade, isto é, de serem tratadas de uma maneira ligeira, açodada. É porque na superfície do comportamento ou da cultura, na superfície é que se disputam os interesses, e é na superfície também que se exercem as dominações. Mas, questões fundamentais não são apenas superficiais, elas não somente desencadeiam os interesses e as provocações de dominação, pois tem também uma outra dimensão, uma dimensão de profundidade. A felicidade e a alegria não são feitas apenas do interesse de dominação. São também construídas e edificadas com a sua provocação, pela criatividade e inventividade do comporta­mento individual e coletivo, social dos homens.

Por isso, a superficialidade com que se costuma lidar com as questões referentes à felicidade e à alegria é espantosa e é justamente por isso que é espantosa essa superficialidade. Isto é, tanto a superficialidade quanto o espanto, constituem apanágio não apenas da felicidade e da alegria, como da condição humana e compõem o modo de realizar-se das comunidades humanas. Isto é, toda comunidade humana, todo comportamento humano é trabalhado, é atravessado pela tensão entre superficialidade e espanto. Este espanto provém das entranhas das realizações humanas. De ambos, da superficialidade e do espanto, participam todas as questões fundamentais, todo desafio de provocação e de diferenciação, as questões que se referem e dizem respeito ao humano, à condição humana, à singularidade humana de todos nós, dos homens. Assim, não é possível se obter um pouco de transparência, um pouco de encaminhamento ou de dificuldade, de obscuridade, senão tomando tanto a felicidade quanto a alegria pela profundidade de tudo que é desafio e provocação humana.

Persistir em enfrentar os desafios da condição humana é procurar saber o que é o humano no homem, em nós mesmos, nos outros, no esse outro, no esses outros; esses outros são os nossos outros, são os outros de nós mesmos e os outros dos outros. É esta, portanto e sempre, enquanto se persistir em enfrentar esse desafio, quando se supõe simplesmente que não existe outro, só existe o si mesmo, nada existe além do que sabe a transparência, a clareza da consciência a respeito do outro, enquanto se ficar preso a essa condição de "nós já sabermos o que é que é ser humano", pelo fato de sermos, nós mesmos, seres humanos e pertencermos a humanidade, a verdadeira questão e o desafio fundamental da felicidade e da alegria ficarão sempre para trás, às costas de qualquer empenho ou esforço de relacionamento. É esse escamotear-se, esse esconder-se do obscuro, do profundo, na superficialidade e na clareza, que marca sempre de novo os esforços, as investigações, as discussões do conhecimento. Do conhecimento humano, do que é que é o seu esforço e seu empenho por ser feliz e alegrar-se.

Ao contrário do conhecimento, impõe-se, portanto uma radicalização do relacionamento, pois, o conhecimento visa o que? Visa sair do obscuro para o claro, visa reduzir as dimensões de obstáculo, de provocação, de desafio para as dimensões do conhecido, do já trabalhado, do já absorvido. E esta atitude ou este propósito, esse esforço, têm o seu lugar e a sua razão de ser, mas não esgotam a condição humana. Não chegam, portanto a preencher, não chegam a satisfazer o cabedal de exigência das realizações em que todos nos sentimos empenhados.

Por isso, ao contrário dessa atitude se impõe uma radicalização do relacionamento com o esforço de buscar a felicidade e de alegrar-se.

Essa radicalização poderemos encaminhá-la, acompanhá-la ou senti-la através de uma pergunta simples: como é possível que haja este feito, o fato absoluto da felicidade? Como é possível haver alegria? Como se chega a ser trabalhado a ser impulsionado a ser atravessado e o sentimento de alegrar-se? Alegrar-se com que? Alegrar-se para que?

Alegrar-se de que? Talvez seja este um dos caminhos de se radicalizar, de se aprofundar o relacionamento com os fenômenos de felicidade e de realização humana na alegria. Este fenômeno de radicalização talvez seja capaz de ajustar-se à seguinte provocação: por que um ser natural, o homem se vê sempre de novo levado por si mesmo a estar num outro ser, a estar numa natureza, transformando-a em busca de felicidade e de alegria? Se se considera essa colocação abstratamente, abrem-se três possibilidades do homem estar na natu­reza buscando ser feliz, buscando alegrar-se com este estar com sua natureza.

A primeira possibilidade aconteceria em abstrato e dar-se-ia, se a natureza em que o homem esta oferecesse a ele apenas facilidades. Neste caso, o ser do homem e o ser da natureza coincidiriam perfeitamente, ou quase plenamente. Não haveria, assim, indiferença entre um e o outro, entre o si mesmo e o outro de si mesmo. O homem se esgotaria com ser a natureza e nada mais. Não haveria, portanto, a provocação, o desafio, o empenho de alegrar-se e de ser feliz, de buscar a felicidade. Tudo seria natureza. É o que acontece na nossa experiência, ou o que nós achamos que acontece em nossa experiência com os chamados seres naturais, com os fenômenos naturais. Isto significa que um ser natural, digamos uma pedra, não se realiza na diversidade, na diferenciação, nem pela diferenciação. E por isso ela não pode se distinguir por nenhuma diferença de sua própria natureza. Daí, não se colocar dentro da nossa experiência a questão da felicidade da pedra, a questão do alegrar-se da pedra. Não quero com isso dizer que se tenha a possibilidade de excluir da pedra esta condição de alegrar-se, pois qualquer que seja o esforço e o empenho de nos aproximarmos da pedra, é sempre nos aproximarmos do outro de nós mesmos. Portanto, no alinhamento uniforme e unívoco do homem com a sua natureza, o homem não poderia ter necessidade, seus desejos não se diferenciariam de sua satisfação. E por isso mesmo não poderia haver a experiência de desejo que nós temos, a partir da qual brotam o esforço e a busca da felicidade, o empenho e a realização da alegria. Para haver desejo é, pois, indispensável algum nível de insatisfação. O homem não poderia ser homem se não lhe faltasse descontentamento. Significa que o homem é um ser essencialmente descontente. Ele é um ser insatisfeito, não se satisfaz nem com o que ele é e não tem, nem com o que ele tem e não é. É sempre marcado não por esse trabalho, não de no desejo, não da insatisfação entre ele e a natureza, ele e a sua natureza, ele e a natureza outra dos outros, a natureza da natureza, a natureza criativa ou a natureza criada. Sem oferecerem resistência um ao outro, homem e natureza não se distinguiriam entre si. Não se daria nem mesmo a possibilidade de alguma desigualdade, pelo simples fato de não haver dois, mas um só. Alegria é sempre uma experiência do plural, esse plural não precisa ser sempre e necessariamente individual. Mas está sempre atravessado por uma cisão entre o si mesmo e o outro, entre a necessidade e a sua satisfação, o seu objeto de satisfação, o que é capaz de conservar e aumentar por transformação, por diferenciação, a insatisfação da necessidade, da demanda de necessidade. Estar na natureza equivaleria, nessa primeira hipótese, é uma hipótese abstrata, equivaleria a estar dentro de si mesmo.

Mas essa não é a única hipótese que se pode inventar abstratamente.

Pode-se fazer uma hipótese contrária a essa. A segunda possibilidade abstrata seria o inverso dessa primeira. A natureza não ofereceria ao homem senão dificuldades intransponíveis entre obstáculos que não poderiam ser vencidos, ultrapassados, nem ser transformados; nem transformado fora de si, nem transformados dentro de si. O ser do homem e o ser da natureza não seriam somente diversos e diferentes, mas seriam trabalhados por um antagonismo excludente. Também neste caso não poderia haver felicidade nem alegria. O homem não poderia estar na sua natureza nem na natureza do outro, nem por um instante. Pois todo e qualquer esforço de persistência seria um esforço fadado sempre a fracassar, antes mesmo de buscar qualquer empenho de realização.

Por isso, uma terceira possibilidade, também abstrata, embora se apresente como sendo concreta. Concreta porque nasce com a própria realização do empenho, da busca, do desejo de ser feliz ou da experiência de alegrar-se com a busca da felicidade. Alegrar-se com a busca da felicidade significa não ser totalmente, inteiramente feliz. Isso faz parte da felicidade, faz parte da experiência da alegria, assim como a insatisfação é constitutiva do processo de elaboração do desejo.

Ao estar na natureza, o homem se descobre inserido numa rede híbrida, emaranhada tanto de facilidades quanto de dificuldades. Toda a sua realização resulta de uma conquista desses dois poderes. O fenômeno, o processo mais radical de todos que conferem realidade à busca da felicidade e dão um perfil de realização à vida humana, é esta ambigüidade radical de se estar imerso num mundo de facilidades e de dificuldades. E que, por isso mesmo, é trabalhado pela dinâmica criadora da diferenciação, da busca das diferenças. E por que? Porque se o homem não dispusesse de facilidades, não seria possível viver e, em conseqüência, sobreviver. São as facilidades da natureza que lhe proporcionam o desafio de existir na busca da felicidade. De alegrar-se com essa busca, de alegrar-se com o impacto que lhe atravessa todas as entranhas, de buscar aquilo que não se tem, mas que se dispõe do empenho e da força de diferenciar-se, para poder se fazer a experiência de não se ter. Mas como esta proporção inclui sempre dificuldades, a possibilidade de sobreviver e de existir inclui sempre, a cada instante, a ameaça e o perigo do fracasso. Pois a alegria é o relacionamento com o perigo do fracasso em termos de criação, em termos de transformar o fracasso em realização. Agora se pode então perceber, dentro dessa perspectiva, porque a vida humana não é um estar inerte, passivo, mas um desafio de conquistar constantemente a sua sobrevivência, numa relação, numa busca incessante de felicidade, acompanhada pela alegria da transformação.

Assim, toda felicidade é sobrenatural, no sentido de estar além do que é dado como natureza, como natureza acabada, pronta, entregue. Significa que o sobrenatural para a realização da busca de felicidade humana é a diferenciação, a entrega de uma provocação criativa de diferenciação.

Portanto, o sobrenatural tem o sentido de estar além e acima do já pronto e acabado da natureza.

Esta experiência se faz fora da história ocidental, que é a nossa história, história em que fazemos a nossa experiência, mesmo a experiência da diferenciação, do encontro com os diferentes. Heráclito já lhe tinha dado uma extensão de totalidade quando ele fala da luta da diferenciação. Pois é esta luta que nos habilita a buscarmos o controle e o domínio, não apenas do que nós somos e temos, mas também daquilo que constitui o limite de nosso esforço de ter alguma coisa ou de ser alguma coisa, ou de buscar a realização de algum empenho. O exemplo dado aqui é o da pedra, que o seu modo de ser é o integrante da paisagem. Esse modo de ser integrante da paisagem lhe é dado pronto e acabado. Significa, em nossa experiência, que a pedra não tem de conquistar nem a paisagem, nem um lugar na paisagem, nem de diferenciar-se dessa paisagem e desse lugar. A pedra não conquista a sua condição de pedra na refrega de conflitos e de tensões, de empenhos com a transformação do fracasso, através da alegria. Para o homem, é que ser e combater se identificam.

Assim, o homem tendo que lutar com as dificuldades para transcender a natureza, o que define e caracteriza sua diferenciação ou sua diferença com o não humano é a busca da felicidade. É ter o ofício de criar a cada instante o próprio relacionamento. Ao homem, portanto, só é conferi da a possibilidade de ter a realidade de sua pró­pria alegria, de sua própria felicidade. A felicidade se conquista no combate das diferenças, pela diferenciação de suas experiências de alegria. O homem tem de ganhar a vida, como está escrito no livro do Gênesis, com o suor de seu rosto em todos os níveis de sua realização e não apenas no nível econômico do pão de cada dia, mas, sobretudo no regime da diferenciação e da diversidade de seus empenhos e de suas lutas, de seus conflitos de felicidade.

Então, é com o suor do rosto que o homem se torna feliz e se alegra com esse suor. E tudo isto porque o modo de ser do homem não coincide perfeitamente com o modo de ser de suas naturezas. É que o homem é feito de uma condição híbrida: em parte afinado, em parte desafinado com sua própria natureza. É ao mesmo tempo um ser natural e trabalhado por um empenho e um esforço de transcender, de ultrapassar, de não contentar-se com a sua natureza.

Aristóteles tem uma palavra que diz o seguinte: que o homem está numa fronteira entre duas coisas diferentes que se conflitam, que se combatem, que se embatem uma na outra. Ele diz que o homem é o fronteiriço real, um fronteiriço da realidade, que vive na interseção de natureza e sobrenatureza, que transforma tanto o natural quanto o sobrenatural numa terceira dimensão, dimensão esta que se torna a sua alegria, sua primeira diversão. Significa que o que há de espiritual no homem, o que há de mental no homem é sempre a sua natureza, mas é a sua natureza dotada e trabalhada por uma dinâmica de diferenciação, de transformação, de ir cada vez mais abrindo novas acolhidas para novas diferenças. O que ele tem de natural não se realiza por si mesmo. A natureza lhe é uma questão tão fundamental quanto o espírito, porque o espírito nada mais é do que a natureza movida por uma dinâmica de diferenciação. Por isso, o homem sente sua natureza como um desafio de transformação, numa realização típica e especificamente trabalhada por uma busca de felicidade. Por sua vez, a so­brenatureza, ele não a recebe pronta e realizada, mas como possibilidade de realização, como uma tarefa a ser criada e ser cumprida. O homem é sempre, em todas as dimensões e níveis, seu empenho de ser, ele é sempre um empenho, ou como numa palavra que no início do século se usava muito, um projeto, uma busca, um empenho, um projeto de diferenciação. E somente como projeto que ele vive e sente, assume e aceita as condições de sua experiência, os percalços e as peripécias de sua realização. A cada instante, portanto, nesse empenho é o que o homem sente o que ele chama de vida, no afã de cumprir esse projeto de diferenciação, de transformação. Tudo o que faz ou deixa de fazer, tudo o que é ou deixa de ser, acha-se sempre a serviço e se dá sempre em função desse projeto de diferenciação.

Mas não se deve confundir projeto com programa. Por que? Porque programa é uma combinação de possibilidades já decididas e realizadas, já prontas, já dadas, já operantes, já disponíveis. Projeto é uma aventura de criar possibilidades, de criar a diferença que se é na aceitação desse hibridismo das dificuldades e das facilidades. Se nós - estamos aqui reunidos, é porque aceitamos, de um modo ou de outro, que todo empenho que se fizer nos faz chegar a ser pessoal e comunitariamente, esse projeto de diferenciação que cada um sente e as­sume no que é ser, na sua maneira, dentro de seus limites, suas vivências e seus obstáculos.

Assim, na felicidade, o homem é uma realização que não tem realidade nem natural, nem sobrenatural, nem corporal, nem espiritual. Trata-se sempre de um esforço por realizar e buscar uma diferenciação. Ninguém nunca é tudo o que tem por isso todos aspiram e se empenham por conquistar o que lhes é dado ter, lhes é dado ser, lhes é dado ser e ter na diferença, na diferença com o outro, na diferença consigo mesmo, É essa a condição de toda e qualquer busca de felici­dade que, como se diz na passagem do salmo, que alegra o coração do homem, uma realização única e sem repetição na totalidade do real e no universo das realizações.

Por esse empenho de busca de felicidade, o homem se faz mais estranho para si mesmo, para os outros. Uma realização cuja realidade não está no que já é, mas no que ainda não é. Uma realização que consiste em nunca ser tudo que sua capacidade de diferenciação lhe confere. O conjunto, os modos de ser que se reduzem ao que cada um já é cuja possibilidade de diferenciar-se coincide com a atualidade de um empenho de uma condição já dada, é o que chamamos de natureza.

Neste sentido, a busca de felicidade se distingue da natureza que visa assumir a pretensão de ser, ao mesmo tempo, identidade com a natureza na diferença, na diferenciação da natureza. Cada época, cada povo, cada indivíduo molda e modula de modo diferente a pretensão de felicidade.

Significa a pretensão de projetar a sua diferenciação e realizar um projeto de vida, que é como se fosse uma palavra que só é dita uma vez e nunca mais se repete. Agora talvez isto se compreenda, mas com certa obscuridade, pois a obscuridade não é uma deficiência, mas promessa de diferenciação. As suposições e os pressupostos desse fenômeno radical que são a busca da felicidade e o alegrar-se com essa busca, por não ser totalmente presenteado, como um dom recebido feliz, a felicidade. A felicidade como um dom uma degradação, é, portanto a tristeza da realização humana.

Existir consiste em realizar o projeto do que somos e não somos, dentro de determinada integração do processo diferenciador de nossas possibilidades, que não nos são dadas, mas que devem ser conquistadas. Por isto, não se pode escolher de antemão a felicidade em que estamos empenhados de alcançar, de buscar. É que nós já nos encontramos, desde sempre, dentro de um esforço, de um movimento, dentro de um processo que perfazem a ordem de nossa dife­renciação. Este processo, esta ordem, não é apenas a paisagem que nos cerca, mas também a nossa própria história, o nosso próprio corpo, nossa própria condição, nossa própria mentalidade.

Mas tudo isso, eu não tenho como coisas dadas, eu só os tenho como trama de diferenciação.

O projeto que aciona essa conquista de felicidade impõe seu perfil a tudo que recebemos e encontramos em nossa experiência, em nossos percursos. Assim, a natureza não é senão o conjunto de todas as nossas condições de produzir possibilidades ou descobrir limites que conferem ao nosso projeto de diferenciação, não somente o seu sucesso, ou a sua perspectiva de sucesso, mas também, o que ele tem de sal, de gosto, de sabor.

A felicidade é o acervo dessas experiências da busca do alegrar-se com a diferença, pois o alegrar-se com a diferença implica em aceitar e transformar o que não se tem num caminho e num movimento de conquista de novas realizações e novos projetos. E assim, felicidade representa uma experiência de conquista da diferenciação, que continuamente a nossa alegria nos trás e nos assegura no elan de, mesmo no fracasso, mesmo no cansaço, mesmo na desistência, nos animar com novos projetos de realização e nova busca de conquista do que ainda não somos, mas já temos.

Muito obrigado.

2 comentários:

cesar kiraly disse...

Querido amigo Rogério,

gostaria de dizer obrigado pela postagem dessa aula do professor Carneiro Leão. Verdadeiramente uma aula magnífica. Justiça seja feita a Heidegger: a sua filosofia abre possibilidade poética e imaginativa para o pensamento. A despeito do paradoxo que é o nome de Heidegger: acho que podemos ser tributários de sua inovação conceitual, sem o sermos de todos os seus conceitos, podemos se herdeiros da capacidade inventiva para a filosofia, sem sermos herdeiros do tipo de inventividade almejada por Heidegger. Alguma coisa que só podemos fazer com um filósofo: aderir ao seu espectro. O fato da aula contar com a pre-sença de Chaim (sem trocadilhos heideggerianos)a abrilhanta ainda mais. Talvez, Chaim seja a pessoa mais encantadora de se ouvir falar que já tive a chance de conhecer. Talvez, por sua fragilidade e força. Talvez, por sua felicidade e horror diante do público. Até mesmo em letras transcritas, essa característica fica evidente.

Um abraço,

Cesar

P.S. Feliz 2008 meu amigo.

Rogério Silva disse...

Cesar

Sem dúvida Chaim tem a fragilidade de uma porcelana fina e a força de um diamante. Acompanhado do saber de Emmanuel com Heidegger e com a sua generosidade a filosofia se eleva.

De Voltaire, no Candido ou o otimismo, para abrilhantar mais ainda, retirei o pequeno texto: “Envelheci na miséria e no opróbrio, não tendo mais que a metade do traseiro, e sempre a lembrar-me de que era filha de um papa; cem vezes quis matar-me, mas ainda amava a vida. Essa ridícula fraqueza é talvez um dos nossos pendores mais funestos: pois haverá coisa mais tola do que carregar continuamente um fardo que sempre se quer lançar por terra? Ter horror à própria existência e apegar-se a ela. Acariciar, enfim, a serpente que nos devora, até que nos haja engolido o coração?”

A experiência de felicidade é a capacidade de alegra-se, de diferenciar-se na posta da vida como processo. A morte não é um fracasso da vida, mas o seu sucesso. E aquela que aciona o processo de superar novas limitações. Significa que morremos e temos a alegria de viver porque morremos. Não é que a morte seja a tristeza, a negação da vida. A morte é também o fazer parte da realização da vida.

Um forte abraço e feliz 2008.

Rogério