Não sei se podemos pensar num instinto de longo prazo para a sobrevivência do grupo no caso humano, muito menos se ele costuma aflorar nas situações de crise fazendo “homens-comuns-transformados-em-heróis”, ou mesmo transformando um homem básico num anti-social.
A questão, a meu modo de ver, é que somos regidos também por um outro regime que é o regime das pulsões. Digo “também” porque também somos regidos pelo instinto do mesmo modo que cada espécime animal é.
Convém definir o conceito de pulsão para que fique claro o que pretendo dizer. De acordo com o Vocabulário de Psicanálise de J.Laplanche/J-B Pontalis, trata-se de um processo dinâmico que consiste numa pressão ou força (carga energética, fator de motricidade) que faz tender o organismo para um alvo. Segundo Freud, uma pulsão tem a sua fonte numa excitação corporal (estado de tensão); o seu alvo é suprimir o estado de tensão que reina na fonte pulsional; é no objeto ou graças a ele que a pulsão pode atingir seu alvo.
Freud diferencia instinto de pulsão, afirmando que o instinto qualifica um comportamento animal fixado por hereditariedade, característico da espécie, pré-formado no seu desenvolvimento e adaptado ao seu objeto. A pulsão é fundamentalmente uma revindicação permanente de satisfação, que diríamos com Lacan tratar-se de uma exigência constante e a todo o custo de gozo; de tal modo que o meio, o objecto da pulsão, poderá ser muito diverso. O que significa que, ao nível pulsional, o sentido último, o "sentido do sentido" é a satisfação, o gozo.
Por isso eu vejo, que para que uma sociedade seja considerada saudável é necessário que ela tenha em seu bojo as mais diferentes mentes, inclusive o anti-ecológico e o psicopata.
De que nós somos feitos se não de algumas coisas que nos agradam e outras que talvez deploramos como a loucura, a devacidão ou outra forma mesquinha de crueldade?
Quando o Freud de “Mal estar na cultura” coloca que não só estamos sujeitos às leis da natureza, como também estamos sujeitos aos males do corpo e principalmente as conseqüências das relações humanas, ele leva em consideração as leis universais: a toda ação há uma reação e a responsabilidade pelas próprias escolhas, além da hipocrisia.
Como fazer uma escolha entre o “certo” e o “errado” quando o que prevalece é o incerto?
A postagem do Mauro Sei ou não sei? Eis a questão! demonstra como aprendemos a ignorar o incerto, ou tortura-lo até que se torne “certo” ou “errado”. O que provoca uma grande incapacidade da maioria das pessoas de entender a ciência.
A toda escolha se pressupõe uma renuncia. No exemplo do Mauro se ele escolhe pelo bairrismo ele renuncia o acerto e vice versa. Ganha e perde ao mesmo tempo.
Isso se vê claramente na postagem da Silvia Clea “A quem interessa?”
Há duas ou três décadas atrás glamurisou-se o cigarro como objeto de fetiche do sucesso, da elegância, do poder, etc. até que os males do fumo viessem à tona. Pois bem, agora como a postagem mostra, surge uma nova notícia que alerta para o fato de que ex-fumantes ainda estavam em risco.
Acontece que quem lê (principalmente os fumantes) só percebe o que quer, ou seja, “que não adianta largar o cigarro que o câncer virá de qualquer jeito”. Esse tipo de matéria é, na verdade, um desserviço à sociedade, prevê a autora.
A propaganda política, a publicidade, a manipulação de notícias, os horóscopos, as cartomantes, as previsões econômicas e do fim do mundo, etc. funcionam como uma reflexão sobre as crenças e crendices.
Octave Mannoni em seu interessante artigo “Eu sei, mas mesmo assim…” (in Psicose, uma leitura psicanalítica - editora escuta - 1991) aborda o tema das crenças, tentando explicar como alguém acredita ou não em algo, como se sustenta uma crença, como a crença se relaciona com a fé.
Usando o referencial teórico de Lacan, de quem foi um dos primeiros e mais sérios discípulos, Mannoni remete o problema das crenças ao mecanismo conhecido por recusa (verleugnung), fenômeno que Freud descreve pela primeira vez ao falar de fetichismo.
A recusa é a forma como o fetichista responde à percepção da diferença anatômica sexual, a ausência do falo na mãe.
O fetichista tenta evitar as conseqüências desta percepção da ausência do falo na mãe. Ele consegue ver que não existe o falo materno e - ao mesmo tempo - manter a crença em sua existência. Consegue esta façanha através deste mecanismo específico da recusa da realidade, que provoca uma cisão no ego, dividindo-o em dois lados, um deles respeita a realidade, ou seja a inexistência do falo materno, e outro continua acreditando no falo materno. Tenta assim contornar as dores inevitáveis próprias ao processo edipiano. Constitui o fetiche, objeto que em sua fantasia representa aquele falo inexistente.
O fetichista crê na existência do falo e simultaneamente descrê no mesmo. Ele acredita e não acredita. Mannoni vincula a estrutura das crenças as mais variadas que nos levam à rejeição. O que equivale a dizer que se a recusa é patognomônica do fetichismo, ela - apresentando-se de maneira menos radical e patológica - está presente de forma muito mais abrangente e disseminada em todas as outras estruturas psíquicas.
Diz Mannoni: “(…) é preciso que a crença sobreviva ao desmentido, embora ela se torne inapreensível, e que se veja dela apenas os efeitos completamente paradoxais. Este exemplo abriria todos os tipos de caminho: a utilização de falsas notícias com objetivos de propaganda, mesmo quando devem ser desmentidas, as promessas que não podem ser cumpridas, a psicologia da mistificação e dos impostores”.
”Eu sei, mas mesmo assim…” que é como Mannoni sintetiza esta posição de manter uma crença mesmo depois de ter um conhecimento que a invalidaria, atitude própria da recusa, pode ser detectada em muitos acontecimentos de nossa psicopatologia da vida cotidiana ligada às crendices, tipo horóscopo, cartomante, previsões do fim do mundo, loterias, tarôs, duendes, etc.
”Não acredito em cartomantes, mas mesmo assim…” toda vez que agimos assim, no fundo estamos reatulizando de forma disfarçada a atitude do fetichista, o “não acredito no falo da mãe, mas acredito”. Estaria aí o especial prazer que se pode usufruir determinadas crenças, pois o que está em jogo não é propriamente o teor da crença e sim a estrutura do poder acreditar e não acreditar, o ver a realidade da castração e o recusá-la.
A publicidade joga com nossos desejos narcísicos, sexuais e agressivos. Procura alimentá-los, propondo novas identidades que realizem tais desejos, que estariam acessíveis através de objetos de consumo idealizados. Vemos então que, além disso, ela conta com outra poderosa aliada que é a recusa da realidade. Ninguém acredita inteiramente na publicidade, mas mesmo assim… realizo meu desejo de negar a castração, mantenho a existência do falo materno.
É como se o “normal” (entenda-se neurótico) se vingasse da rigidez da realidade à qual foi forçado a ingressar, mantendo um pouco a possibilidade que o fetichista tem de driblá-la.
Não dá para conviver com a incerteza imposta pela realidade, mas mesmo assim é preciso conviver, ou por crença ou por fé.
Mannoni estabelece uma diferenciação entre fé e crença (crendice). Embora sempre estejam misturadas, ambas são feitas da palavra de outrem, estariam em níveis diferentes: uma no simbólico, a outra no imaginário.
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