09 agosto 2007

"O SONHO" EM CARTAZ E NO DIVÃ




Por Rogério Silva

Na montagem da peça "O Sonho de Strindberg" conta-se a viagem de Inês, filha do deus Indra, à Terra, onde a mesma conhece os seres humanos e suas principais angústias e desilusões. Inês encontra durante a viagem o castelo, o oficial, a porteira, o advogado e outras personagens e com elas passa a experimentar toda sorte de situações e experiências vividas pela humanidade: do casamento à separação e da angustiante espera ao eterno recomeço.

A encenação procura explorar as metamorfoses que o texto propõe, por meio de imagens construídas que se figuram e desfiguram diante do olhar do espectador-sonhador. As transformações cênicas acontecem numa alusão direta ao fazer teatral, referência extraída da leitura do texto. A troca de figurino e de cenário acontece diante do espectador, chamando-o a participar da construção cênica, de um grande espaço de jogo. Essa montagem traz à cena atual os mesmos questionamentos que fez o autor na sua época. A montagem desse texto procura suscitar a construção de imagens inspiradas pela dramaturgia, imagens estas que remetem à solidão, à espera, ao remorso, às limitações e as frustrações do ser humano moderno.

Dessa forma teatro e psicanálise, Strindberg e Freud ou Bergman, sonho e sonhador se confundem criando um espaço de confusão (co+fusão) do sonho do sonhador e do sonho do autor do sonho.

Tomando como exemplo um quarto de criança com brinquedos esparramados junto com roupas e outros objetos, o descontrole impossibilita uma descrição. Assim Strindberg escreve que, para conceber “O Sonho”, seguiu uma lógica sem a lógica do sonho, "dando livre curso à imaginação". A questão é que, de fato, um sonho sonhado não é mesmo controlado, até que seja descrito. Assim como os brinquedos que precisam ser arrumados, verbalizá-lo obriga o sonhador a organizá-lo conscientemente, jamais voltando a ser o que realmente foi. Falando sobre a insubstancialidade das personagens da peça, Strindberg escreve que há "uma consciência suprema que a todas domina: a do sonhador". E quem é este sonhador? Qualquer pessoa que descreve seu sonho está criando uma ficção, na medida em que o sonho em si já se foi, ficando o sonhador livre para criar sua versão. Ao se referir ao sonhador cuja consciência domina as personagens, Strindberg fala de um autor criador, fala de si mesmo enquanto escritor. A criação, de qualquer natureza, é fruto da imaginação de alguém - consciente ou inconsciente.

Através da reflexão sobre as dimensões do sonho enquanto material ficcional e sobre o aproveitamento de sua estrutura para uma dramaturgia e, através do jogo de tentativa de identificação do eu autoral subjetivo com os personagens da peça, percebe-se a grandeza de "O Sonho" - principalmente levando-se em conta a época em que foi escrita, 1901. Freud também publica seu ensaio “A Interpretação dos Sonhos” (1900) nessa época.

Diametralmente oposto à dramaturgia de sua contemporaneidade, "O Sonho" não fecha possibilidades, nem permite conclusões. O próprio final sinaliza isto. Qual um demiurgo, Strindberg incinera os personagens e a própria forma dramatúrgica como uma metáfora ao teatro e sua efemeridade incondicional. A peça segue em um fluxo único, sem uma ordenação temporal, durando o tempo das constantes metamorfoses de lugares e personagens - tempo e espaço caminhando juntos - para depois entrar em combustão. Sem passado nem futuro, ela dura o tempo de um sonho, ou do que simplesmente é: uma peça de teatro.

Na psicanálise o sonho também não fecha possibilidades, nem permite conclusões. Freqüentemente observamos no trabalho clínico o relato de pacientes procurando "objetivar" da melhor forma possível, sua dor, seja física ou psíquica, muitas vezes até constituindo nos primeiros encontros um relato dissociado dos acontecimentos de sua vida, na tentativa de organizar um discurso racional de suas dores; no entanto, no decorrer do trabalho terapêutico, o campo da transferência transforma-se: a qualidade do vínculo instaurado pela dupla analítica, e as produções emergentes através desta relação promove a já citada "transformação de narrativa em experiência", relembrando suas vivências primordiais: "pensar o ainda não pensado".

Neste sentido, o sonho é uma manifestação exemplar. O que de mais autêntico poderia aparecer para "contar" a história vivida na transferência? Assim, o fenômeno onírico seria uma das formas por excelência, de o sujeito informar seu sofrimento. O sonho seria, então, além da realização de um desejo, o sonho seria o lugar de avistar e examinar os fenômenos psíquicos, sendo esta capacidade uma condição aos poucos conquistada dentro da relação terapêutica, enquanto um campo potencial vai sendo criado na dupla. Sabemos que Freud utilizou-se dos sonhos tanto para ampliar a metapsicologia psicanalítica, quanto para realizar sua auto-análise, e, nesse sentido, colocou o fenômeno onírico no centro das investigações do psiquismo e no divã.

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