12 julho 2007

COMIDA É COISA DE BICHO


– A coisa vem quando eu acordo, e não é todo dia não, eu estou tomando uns calmantes, a ginecologista me deu uns remédios pra melhorar a coisa. A coisa aparece quando eu acordo, aí começa a me dar, sabe um troço dentro de mim, eu começo a me sentir mal, a me sentir com muito medo, a me sacudir inteira. Eu tenho pavor e acho que vou me atirar pela janela. Não sei nem como é que eu chamo isso, eu chamo a coisa; não sei como chamar isso. É a coisa que me dá; meus filhos ficam horrorizados, eles têm muito medo quando eu tenho a coisa. Eu não consigo controlar, só dá de manhã, quando eu acordo. De noite não dá, de noite eu fico satisfeita dentro de meu quarto, com ninguém me incomodando, então não tem problema. Mas de manhã, se eu bobear, a coisa vem.


– É eu tenho que ficar o tempo todo atenta; fico acordada, fico controlando pra ver se a coisa não vem, porque se a coisa vier eu tenho medo. Eu não tenho medo de ficar em casa quieta, sozinha no meu quarto. De noite eu fico acordada no meu quarto, vendo televisão e comendo. Tá vendo como estou gorda; é por isso que não tenho vontade de ir a lugar nenhum.


– A coisa está dentro de mim. Comer é coisa de bicho; eu pareço um bicho comendo. E gorda desse jeito, o que é que vou fazer na rua? Eu não tenho dinheiro, porque o sócio do meu ex-marido me roubou. Agora estou pobre, não tenho quem me sustente, não tenho nada. Para meus filhos faço o que posso; o pai os ajuda, mas eu, de dinheiro mesmo, não tenho nada. E gorda desse jeito, eu tenho vergonha de sair na rua; as pessoas ficam olhando pra mim e vendo que eu sou um bicho – comida é coisa de bicho. Mas eu até que me dou bem com as pessoas; eu gosto de ver as pessoas, de estar com as pessoas. O problema é chegar a me encontrar com as pessoas. Eu só não me dou bem com a minha mãe; minha mãe é uma coisa. Eu me dava bem com meu pai, mas com minha mãe eu não me dou bem não. Também, ela nunca olhou pra mim; ela só olhava pra ela, só cuidava dela. É uma sedutora, uma vaidosa; até hoje ela é assim. Ela só olhava pra mim pra me chamar de sapa gorda, fora isso, nem sabia que eu existia. Eu quero mudar, sabe doutora, acho que é um desperdício estar assim, eu acho que a vida é boa. Mas, quando estou achando que a vida é boa, me dá a coisa, e eu tenho medo da coisa. Meus filhos me tratam com pena; meu filho tem vergonha de mim, porque eu sou gorda. Ele não suporta gordura. Eu tenho pena de meu filho... Meu filho faz um grupo de música; é a hora que eu mais gosto, mas eles não ensaiam lá em casa, porque ele tem vergonha de mim. Eu gosto de música, eu cantava quando era mais nova e ainda canto, mas canta pouco. Eu gostava muito de cantar; cantar é a única coisa boa. Eu queria ter um bar; meu sonho era ter um bar que ficasse na penumbra, que ficasse assim meio escurinho, e eu ia chamar o bar de “Aqui eu canto” e ali eu ia cantar e eu acho que ia ser feliz.


– Eu não tenho vontade de nada. Vir aqui é muito difícil, porque eu tenho que sair de casa. Mas aí, quando estou me arrumando e sei que vou vir aqui, eu fico mais satisfeita. Ontem, quase me deu a coisa; deu-me um medo... Eu acordei muito mal, achando que a coisa vinha. Aí fiquei o dia inteiro no meu quarto e não fiz nada. Sei lá, vai que eu faço alguma coisa e a coisa vem? Mas hoje acordei bem; eu vinha pra cá e aí acordei bem. Qualquer dia desses acho que venho andando. Eu acho a vida bonita, acho a rua bonita. Vejo aquelas pessoas andando; elas parecem tão felizes, parece que elas podem andar. Eu não tenho nem vontade, mas quero vir até aqui andando. Eu moro próximo e pode ser que eu consiga andar até aqui; eu tinha muita vontade de poder andar, como as pessoas andam – é bonito ver as pessoas andarem.

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