06 maio 2007

CARTA AFETIVA

17.XI.11

Prof. Dr. Freud

Viena, I X. Berggasse 19

Querido filho,

você exige pronta resposta à sua afetiva carta; mas eu gostaria de trabalhar um pouco hoje, contente que estou das boas novas que irei lhe comunicar mais adiante. Portanto, ela será curta, não lhe trará grandes novidades. Conheço, naturalmente, seus "problemas com complexos" e admito com prazer que preferiria ter um amigo autônomo; mas criando tantas dificuldades, sou obrigado a aceitá-lo como filho. Sua luta de libertação não precisava se desenrolar entre as alternativas da revolta e da submissão. Creio que você padece também um pouco do medo do complexo que se ligou à mitologia do complexo junguiana. O homem não deve querer exterminar seus complexos, mas entrar em acordo com eles - eles são os dirigentes legítimos de seu comportamento no mundo.

De resto, em termos científicos, você está no melhor caminho para se tornar autônomo. Prova disso são seus estudos sobre o ocultismo, que talvez, por esta ambição, venham sendo beneficiados por um excesso de zelo. Não se envergonhe de ter, na maior parte do tempo, a mesma opinião que eu e não exija de mim pessoalmente mais do que eu estou disposto a lhe conceder de bom grado. Devemos ficar contentes quando, excepcionalmente, uma pessoa consegue lidar sozinha consigo mesma. Você conhece seguramente o preceito: o que não é nosso por direito é Rebach.*

Eis agora as notícias:

Karger precisa para 1912 da quarta edição da Psicopatologia.

O nosso francês de Pitiers, que esteve calado desde janeiro, está me enviando. hoje uma carta, uma contribuição para o Zentralblatt (Homossexualismo e Paranóia), referindo-se a dois conhecidos autores do Jahrbuch, e um impresso de um certeiro artigo na Gaz.[ettes] des Hôpitaux (Ver 1845, ano 84, nº ilegível). Chama-se "Le 'Rapport Affectiv' dans la Cure des Psychonévroses". Ele está muito bem e destaca especialmente um ensaio de Ferenczi. Procure lê-lo imediatamente. Escreverei a ele para que lhe envie um número.

E agora, passe bem e acalme-se.

Com um abraço paternal,

Freud

*Rebbaeh (iídiche rewaeh = juros), expressão da gíria do submundo que significa ganho, sobretudo auferido por meios ilícitos.

Carta de Freud à Ferenczi publicada em “Correspondência” vol.1 (1908-1911) pela Editora Imago.

Segundo Ernest Jones, Ferenczi era o membro mais velho do grupo e o que mais nitidamente convivia com Freud. Quanto ao lado mais nebuloso de sua vida sabía-se muito pouco até muitos anos mais tarde, quando os fatos já não podiam mais ficar escondidos. Circunscreveu-se, até então, ao conhecimento de Freud, apenas de quem era o líder e o amigo brilhante, benévolo, inspirador. Apresentava um grande encanto no seu trato com os outros homens, embora tal não se desse em relação às mulheres. Era portador de uma personalidade calorosa e amável e de uma natureza generosa. Tinha um espírito de entusiasmo e de devoção que incutia e esperava dos outros. Era um analista de altos dotes, com uma extraordinária capacidade de adivinhar as manifestações do inconsciente. Era, acima de tudo, um conferencista e um professor inspirado e capaz de levantar grandes entusiasmos.

Como todo ser humano, também tinha as suas fraquezas. Visivelmente apresentava uma ausência de julgamento crítico. Ao propor esquemas vagos, dava-se muito pouco ao trabalho de examinar a sua viabilidade; mas, quando os seus colegas o defrontavam, ele sempre aceitava as retificações de bom grado. Tinha uma insaciável necessidade de ser amado e quando, anos mais tarde, essa necessidade se apresentou com a inevitável frustração, não pôde resistir a esse impacto e cedeu a essa pressão. Então, talvez como um pano de fundo para encobrir o seu hiperexistente amor aos demais e o desejo de ser por eles também amado, acabou por conformar uma apresentação exterior áspera diante de certas situações, que tendia para degenerar numa atitude de trato dominador e mesma de arrogância autoritária. Isso ficou muito claro nos seus últimos anos.

Ferenczi tinha uma natureza infantil e aberta, com as suas dificuldades internas e suas fantasias desenfreadas, exerceu uma grande atração sobre Freud. Era sem dúvida, o que mais se aproximava aos seus gostos e a sua imaginação audaz e desinibida sempre o estimulara. Constituía uma parte de sua própria natureza, a que raramente dava rédeas saltas, uma vez que havia sido dominado por um impulso cético absolutamente ausente em Ferenczi e por um julgamento muito mais equilibrado do que o que apresentava seu amigo. Longe da crítica de terceiros, muitas vezes os dois companheiros devem ter usufruído fecundos períodos de convívio. A atitude de Freud com Ferenczi era sem pre paternal e estimulante. Freud foi capaz de fazer com que Ferenczi vencesse as suas dificuldades neuróticas e colocá-lo em condições de enfrentar a vida, de maneira tão ampla como nunca se sentiu impelido a fazê-lo nem com os seus próprios filhos.

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