09 dezembro 2006

O MENTIROSO E O CÍNICO

Por Rogério Silva

O que me provoca a escrever esta postagem é a reflexão do jornalista Altamiro Borges a partir de dois lançamentos recentes: de Bernardo Kucinski. O jornalismo na era virtual: ensaios sobre o colapso da razão ética. Editora Unesp e de Venício A, Lima. Mídia: crise política e poder no Brasil. Editora Perseu Abramo. Na citada reflexão ele lança a pergunta: Jornalistas são pagos para mentir?

Infelizmente não posso reproduzir o citado artigo, mas faço uma pequena digressão num certo sentido da psicanálise que faz parte da experiência e da subjetividade, mas eu gostaria de desenvolver um outro aspecto do que está apresentado, o pensamento cínico, enquanto os trabalhos citados abaixo se ocupam da mentira.

Acredita-se que o pensamento cínico teve origem numa época da vida de Sócrates, que teria feito o seguinte comentário: Vejam de quantas coisas precisa o ateniense para viver.

A idéia era demonstrar que a busca interna da felicidade não tem causas externas - aspecto ao qual os cínicos passaram a defender, não somente com palavras, mas pelo modo de vida adotado.

Diferentemente da concepção moderna e vulgar da palavra, para o cínico o objetivo essencial da vida era a conquista da virtude moral, que somente seria obtida eliminando-se da vontade todo o supérfluo, tudo aquilo que fosse exterior. Havia um desejo de retorno à vida da natureza, errante e instintiva, como a dos cães.

Afirmavam que dispunha o homem de tudo que necessitava para viver, independente dos bens materiais, ou seja, carregar apenas o que precisa - tudo o que é meu trago comigo omnia mea meacun porto. A isto chamavam de Autarcia (ou a variante, porém com outra acepção mais difundida, Autarquia) - condição de auto-suficiência do sábio, a quem basta ser virtuoso para ser feliz. O termo grego original é autárkeia - significando auto-suficiência. Esta proposição também foi defendida pelos estóicos.

O cínico seria, assim, o primeiro anarquista, aquele que desacredita nas conquistas da civilização, e suas estruturas jurídicas, políticas, religiosas e sociais - elas não trariam qualquer benefício ao homem. Sendo auto-suficiente tudo aquilo que naturalmente não é dado ao homem pelo nascimento (como o instinto), não pode servir de base para a conceituação da ética. Este pensamento pode ser encontrado no mito do "bom selvagem", de Rousseau.

Diógenes vivia dentro de um barril e possuía apenas sua túnica, um cajado e um embornal de pão. Conta-se que um dia Alexandre Magno parou em frente ao filósofo e ofereceu-lhe, como uma prova do respeito que nutria por ele, a realização de um desejo, qualquer que fosse, caso tivesse algum. Diógenes respondeu: "Desejo apenas que te afastes do meu Sol". Essa resposta ilustra bem o pensamento cínico: Diógenes não desejava nada a mais do que tinha e estava feliz.

Assim como a preocupação com o próprio sofrimento, a saúde, e a morte, a preocupação com a saúde, a morte e o sofrimento dos outros também era algo do qual os cínicos desejavam libertar-se. Por isso que a palavra cinismo adquiriu a conotação que tem hoje em dia, de indiferença e insensibilidade ao sentir e ao sofrer dos outros.

Existem alguns modos de vida pratica que exibem a mentira e o cinismo como atuação profissional, quase estigmatizado em algumas profissões como se fossem verdadeiros transformistas fazendo com que a mentira passe a ter o valor de verdade. Um certo político que, sem ser virtuoso ou corajoso se propõe a uma greve de fome; um certo advogado que é flagrado na TV influenciando seu cliente a adulterar a própria assinatura e jornalistas que, exibem falsos depoimentos no sentido de influenciar seus expectadores – como apresentado por Altamiro Borges, são apenas alguns exemplos que encontramos na contemporaneidade.

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A função política da mentira

A mentira usada politicamente tem uma trajetória tão longa quanto a história da pólis no contexto de suas intrincadas relações. Tais interações implicam sempre a presença do elemento psicológico na arquitetura do Estado e, portanto, caracterizam a inseparabilidade, nessa organização social, dos fenômenos subjetivos que integram sua composição. A mentira vista assim não é simplesmente uma carta no jogo político usada bem ou mal pelo governante ao sabor das razões de Estado, mas uma função tanto do psiquismo humano quanto da política. A teorização de Platão e Maquiavel até Weber já antecipa essa compreensão que a psicanálise pode fundamentar. O corte epistêmico maquiaveliano que retirou a ética do núcleo da nascente ciência política dá à mentira um estatuto especial no seu corpo teórico, na medida em que concede ao governante direito ao uso de meios excepcionais para alcançar os fins almejados.

Por Valton de Miranda Leitão - Psiquiatra e Psicanalista

A banalização da mentira como uma das perversões da sociedade contemporânea e sua internalização como destrutividade psíquica

Na contemporaneidade a mentira constitui um dos principais atributos das relações sociais, instituindo-se como valor eticamente perverso e destrutivo em todos os níveis da vida dos homens. Manifesta-se escamoteada como ideologia ou é expressa cinicamente como "mentira manifesta" (Adorno), normatizando as relações entre os indivíduos sob o signo da hipocrisia, do impedimento de trocas entre indivíduos diferentes (padronização narcísica) e seu poder de coerção promove a simbiose da pseudo-individuação entre os sujeitos. A mentira se revela/desvela sob diferentes matizes desde a ideologia da indústria cultural (Adorno), passando pela mentira manifesta, pelas sutilezas enganosas e opressivas da burocracia, por certas justificativas cínicas de segredo ou exigência de sigilo até às formas de impedimento ostensivamente disruptivas de manifestação de certas formas de desejar, sentir, pensar e agir e/ou de expressões de autenticidade e respeito à alteridade de indivíduos distintos. Assim, a mentira transforma a relação entre os indivíduos em mesmice e farsa. O seu caráter destrutivo assenta-se fortemente na cumplicidade dos indivíduos que, mesmo inconscientemente, dão adesão e reproduzem às suas diferentes expressões. Ela tem a sua eficácia garantida pela permeabilidade e maleabilidade da estrutura psíquica, em especial quando vulnerabilizada porque atingida pela violência social da mentira internalizada. Porém, a sua dimensão perversa e auto punitiva se explicita na falsa verdade com que é acolhida pelo indivíduo e porque interpretada por ele como oriunda de seu mundo interno (Freud - sentimento inconsciente de culpabilidade e fragilidade egóica). O poder de difusão da mentira entre os indivíduos se constrói por meio da banalização das diferentes expressões da malignidade que atravessa a vida dos homens na contemporaneidade. (Hanna Arendt, C. Dejours) Em âmbito mundial, a mentira produz e sustenta a atribuição de periculosidade a certos grupos e/ou nações - "os terroristas" - para justificar ações bélicas contra povos com fins prioritariamente econômicos. (Noam Chomsky).

Por Angela Caniato

Um comentário:

Anônimo disse...

Tenho o sentimento de que a mentira na política esconde um debate sobre a relativização da mentira no espaço político. De certa forma, nos é muito dificil discernir o que pode ser interpretado como verdadeiro ou como falso nas ações da vida política, aprofundando um pouco mais, penso que é bastante complicado afirmar a verdade ou falsidade dos atores da vida política brasileira, contudo essa falta de determinação, aos meus olhos, evidencia a ausência de um outro debate, qual seja, o que enseja a discussão sobre o que, socialmente, tomaremos como falacioso ou verdadeiro. Os cínicos não chegavam a suspender o juízo, desviavam-se do mundo, podemos encontrar vários cínicos contemporâneos, contudo, para além do cinismo precisamos de uma boa conversa pública sobre os critérios que indicam a suportabilidade da vida pública contemporânea.