Talvez só se possa colocar a questão "o que é a filosofia" tarde, quando vem a velhice e a hora de falar concretamente. É uma questão que se coloca quando não se tem mais nada a perguntar, mas suas consequências podem ser consideráveis. Antigamente, ela era colocada, não se parava de colocá-la, mas era demasiado artificial, demasiado abstrata, ela era exposta, era dominada mais que dominava. Existem casos em que a velhice dá, não uma eterna juventude, mas, ao contrário, uma soberana liberdade, uma necessidade pura em que se goza de um momento de graça entre a vida e a morte e onde todas as peças da máquina se combinam para enviar ao futuro um traço que atravessa as idades: Turner, Monet, Matisse. Turner velho adquiriu ou conquistou o direito de levar a pintura por um caminho deserto e sem volta, que não se distingue mais de uma última questão. Assim também na filosofia, a "Crítica do Juízo", de Kant, é uma obra de velhice, uma obra desembestada, atrás e da qual não vão parar de correr seus descendentes.
Nós não podemos aspirar a um tal status. Simplesmente veio a hora de perguntar o que é a filosofia. Não tínhamos cessado de fazê-lo anteriormente, e já tínhamos chegado à resposta, que não variou: a filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos. Mas não era suficiente que a resposta recolhesse a pergunta, era preciso que determinasse uma hora, uma ocasião, circunstâncias, paisagens e personagens, condições e incógnitas da questão. Era preciso poder colocá-la "entre amigos", como uma confidência ou uma confiança, ou então ante o inimigo, como um desafio, e de uma só vez alcançar essa hora, no lusco-fusco, em que se desconfia até mesmo do amigo.
Tradução: Bernardo de Carvalho
Publicado na Folha de S.Paulo, sábado , 22 de setembro de 1990.
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