23 maio 2006

O ESPELHO EMBAÇADO

Para o psicanalista Renato Mezan, paulistas não incorporaram culpa decorrente da leniência do Estado

RENATO MEZAN

Pela violência dos ataques à polícia e a alvos civis, pela capacidade de coordenação demonstrada pelo PCC, pelo despreparo do Estado para lidar com a situação, pela constatação de que o sistema penitenciário está falido, pela percepção de que certas leis são excessivamente lenientes e de que alguns juízes são excessivamente tolerantes em sua aplicação -por tudo isso, os recentes distúrbios em São Paulo deixaram a população atônita. Passado o pânico, alguns se perguntam sobre o efeito desses acontecimentos na auto-estima dos paulistas, na imagem que fazem de si e de sua terra. É ainda motivo de orgulho ser cidadão do Estado dos bandeirantes? Para responder com exatidão a essa pergunta, seria preciso dispor de pesquisas que ainda não foram realizadas.

Assim, o que se segue se baseia em impressão pessoal, baseada no que saiu nos jornais e em algumas idéias da psicanálise. "São Paulo amanheceu triste, calada e confusa", li numa reportagem. A população foi, portanto, atingida por um violento impacto, e a ele reagiu primeiro se protegendo fisicamente -as ruas ficaram vazias- e em seguida por uma espécie de paralisação, refletindo o estupor diante de uma agressão tão súbita e feroz. Essas são as condições que caracterizam um trauma (em grego, "ferida", de uma raiz que significa "furar"): por um lado, a intensidade do golpe que atinge o sujeito e, por outro, a condição de fragilidade em que ele o encontra. É esta, na verdade, que determina se o golpe se tornará ou não um traumatismo: pois mesmo um impacto forte pode não se revelar traumático se a vítima estiver preparada, enquanto um menos intenso, ao pegá-la de surpresa, pode ter efeito devastador. A intensidade do golpe rompe por assim dizer a "casca" que nos envolve (a pele, no caso físico, ou o que Freud chamava de "pára-excitações", no psiquismo) e introduz de chofre uma grande quantidade de excitação no interior do sujeito. Esse repentino e excessivo afluxo de excitações desorganiza o funcionamento subjetivo -de onde a paralisia e o estupor: "Triste, confusa e calada".

Leia a integra deste artigo no Caderno Mais! da Folha de São Paulo de 21/05/2006

RENATO MEZAN é psicanalista, professor titular da Pontifícia Universidade Católica de SP. Escreve na seção "Autores", do Mais!.

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