É injusto reduzir a psicanálise aos destinos do freudismo"
Qual, enfim, a autenticidade e originalidade do pensamento de Freud?
A grande originalidade de Freud no que toca a conceituação do inconsciente foi defini-lo como sistêmico, isso é, o inconsciente, a partir de Freud, deixa de ser um mero adjetivo para caracterizar eventos mentais que não são acessíveis à consciência, para ser concebido como um dos sistemas que compõe a esfera psíquica e o funcionamento mental, com uma lógica e uma modalidade de funcionamento. Foi a partir do estudo dos sonhos, incluindo os próprios, que Freud descobriu a via de acesso para o inconsciente, como se encontra em A interpretação de sonhos, de 1900. O inconsciente passa a ser considerado, então, a parte privilegiada da "metapsicologia", a teoria criada por Freud para apreender a complexidade e os conflitos inerentes à nossa vida mental. Com isso, Freud efetiva a operação conhecida como o descentramento do sujeito, impondo o terceiro golpe no narcisismo da humanidade, na esteira de Copérnico e Darwin.
Como pensar no valor do inconsciente no momento em que a indústria da sedução e do bem-estar a qualquer preço nos impele a uma busca mais superficial de nós mesmos?
De fato, nas primeiras formulações freudianas, datadas do final do século 19, o inconsciente é apresentado em sua faceta expressiva. A idéia derivada dessa concepção é a do inconsciente como um baú repleto de desejos infantis muito antigos e não-realizados, que mereceriam vir à luz algum dia, o que seria proporcionado pela experiência psicanalítica. Mas desde os anos 20, Freud se distancia dessa concepção, entendendo o inconsciente - e as pulsões das quais deriva - como a memória inacabada que possibilita ao sujeito enunciar desejos singulares e constituir uma vida criativa, o que exige, decerto, energia, ou seja, um grande capital libidinal. É justamente essa faceta criadora do inconsciente que inspira a parcela das filosofias contemporâneas atentas aos mecanismos de poder vigentes na sociedade de consumo contemporânea e aos modos de resistência ao controle assim estabelecido. Afinal, se somos permanentemente incitados à ações imediatas visando o enaltecimento do ego e o ganho de prazer, o que se encontra reprimido hoje não é mais a satisfação das pulsões, mas a possibilidade de criar modos singulares de existir.
Qual, afinal, a validade e importância da teoria psicanalítica para se compreender o contemporâneo, além do sujeito individual?
É injusto reduzir a psicanálise a alguns dos destinos do freudismo. Nas últimas duas décadas, no Brasil, a psicanálise, bem como os psicanalistas, têm contribuído de modo decisivo para os avanços alcançados no campo da saúde mental, notadamente para a consolidação da reforma psiquiátrica. Além disso, o aumento no ingresso de psicólogos com formação psicanalítica nos quadros da saúde pública vem tornando a escuta analítica cada vez mais acessível. A maior parte das sociedades psicanalíticas também oferece atendimento comunitário à população menos favorecida. Já a crítica marxista é oriunda de uma concepção equivocada e que já se mostrou ultrapassada que tende a opor a noção de "coletivo" aos desejos, às paixões e à sexualidade. O objeto da psicanálise não é exatamente o indivíduo mas a singularidade desejante. A psicanálise continua sendo uma ferramenta teórica crucial para todo aquele que quer pensar a produção contemporânea da subjetividade, e um método de acolhimento e de transformação expansiva do sofrimento psíquico inigualável.
O status de gênio que tudo explica acabou criando um fetiche em torno de Freud. Para o senhor, quais são as conseqüências culturais desse pensamento?
O "Freud explica" foi a caricatura na qual a psicanálise se tornou, nos anos 1920/1930, em função do abuso da interpretação. Sem dúvida o desejo de Freud de aproximar a técnica psicanalítica do ideário cientificista vigente na época contribuiu muito para isso. Freud era um homem espirituoso e dotado de um fino senso de humor, e não deixou de utilizar esses atributos junto aos seus pacientes. Além disso, era um grande iconoclasta, e detestava a idéia de virar fetiche para os seus discípulos, apesar de não ter conseguido evitá-lo de todo.
Esta entrevista foi publicada no Diário de Pernambuco em 05-05-2006.na coluna de Carolina Leão
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