29 novembro 2010

NÃO HAVERÁ VENCEDORES

MARCELO FREIXO
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Pode parecer repetitivo, mas é isso: uma solução para a segurança pública do Rio terá de passar pela garantia dos direitos dos cidadãos da favela
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Dezenas de jovens pobres, negros, armados de fuzis, marcham em fuga, pelo meio do mato. Não se trata de uma marcha revolucionária, como a cena poderia sugerir em outro tempo e lugar.

Eles estão com armas nas mãos e as cabeças vazias. Não defendem ideologia. Não disputam o Estado. Não há sequer expectativa de vida.

Só conhecem a barbárie. A maioria não concluiu o ensino fundamental e sabe que vai morrer ou ser presa.

As imagens aéreas na TV, em tempo real, são terríveis: exibem pessoas que tanto podem matar como se tornar cadáveres a qualquer hora. A cena ocorre após a chegada das forças policiais do Estado à Vila Cruzeiro e ao Complexo do Alemão, zona norte do Rio de Janeiro.

O ideal seria uma rendição, mas isso é difícil de acontecer. O risco de um banho de sangue, sim, é real, porque prevalece na segurança pública a lógica da guerra. O Estado cumpre, assim, o seu papel tradicional. Mas, ao final, não costuma haver vencedores.

Esse modelo de enfrentamento não parece eficaz. Prova disso é que, não faz tanto tempo assim, nesta mesma gestão do governo estadual, em 2007, no próprio Complexo do Alemão, a polícia entrou e matou 19. E eis que, agora, a polícia vê a necessidade de entrar na mesma favela de novo.

Tem sido assim no Brasil há tempos. Essa lógica da guerra prevalece no Brasil desde Canudos. E nunca proporcionou segurança de fato. Novas crises virão. E novas mortes. Até quando? Não vai ser um Dia D como esse agora anunciado que vai garantir a paz. Essa analogia à data histórica da 2ª Guerra Mundial não passa de fraude midiática.

Essa crise se explica, em parte, por uma concepção do papel da polícia que envolve o confronto armado com os bandos do varejo das drogas. Isso nunca vai acabar com o tráfico. Este existe em todo lugar, no mundo inteiro. E quem leva drogas e armas às favelas?

É preciso patrulhar a baía de Guanabara, portos, fronteiras, aeroportos clandestinos. O lucrativo negócio das armas e drogas é máfia internacional. Ingenuidade acreditar que confrontos armados nas favelas podem acabar com o crime organizado. Ter a polícia que mais mata e que mais morre no mundo não resolve.

Falta vontade política para valorizar e preparar os policiais para enfrentar o crime onde o crime se organiza -onde há poder e dinheiro. E, na origem da crise, há ainda a desigualdade. É a miséria que se apresenta como pano de fundo no zoom das câmeras de TV. Mas são os homens armados em fuga e o aparato bélico do Estado os protagonistas do impressionante espetáculo, em narrativa estruturada pelo viés maniqueísta da eterna "guerra" entre o bem e o mal.

Como o "inimigo" mora na favela, são seus moradores que sofrem os efeitos colaterais da "guerra", enquanto a crise parece não afetar tanto assim a vida na zona sul, onde a ação da polícia se traduziu no aumento do policiamento preventivo. A violência é desigual.

É preciso construir mais do que só a solução tópica de uma crise episódica. Nem nas UPPs se providenciou ainda algo além da ação policial. Falta saúde, creche, escola, assistência social, lazer.
O poder público não recolhe o lixo nas áreas em que a polícia é instrumento de apartheid. Pode parecer repetitivo, mas é isso: uma solução para a segurança pública terá de passar pela garantia dos direitos básicos dos cidadãos da favela.

Da população das favelas, 99% são pessoas honestas que saem todo dia para trabalhar na fábrica, na rua, na nossa casa, para produzir trabalho, arte e vida. E essa gente -com as suas comunidades tornadas em praças de "guerra"- não consegue exercer sequer o direito de dormir em paz.

Quem dera houvesse, como nas favelas, só 1% de criminosos nos parlamentos e no Judiciário...
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MARCELO FREIXO, professor de história, deputado estadual (PSOL-RJ), é presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

8 comentários:

Rogério Silva disse...

Alguns comentários recebidos por email

Legalizando as drogas, passemos à proibição do chocolate.
enfim, proibir dá muito mais dinheiro que liberar.
Quem acha que o tráfico está no morro espera papai noel na chaminé.
Se é tão simples acabar com o tráfico, por que só agora?
Ah, Porque agora a milícia pode tomar conta de tudo.
Tomara que eu me engane. Mas pelo jeito...Tá tudo dominado!!!
Soraya



Pensei em uma contribuição ao texto do Marcelo Freixo que enviei ontem pra vcs. Tem haver com a temporalidade. Freixo supoe um tempo de futuro pra bandidagem, como se eles sofressem por um futuro que não irá se cumprir (no caso ele fala da morte ou da cadeia). Mas acredito que esta concepção de tempo, de um futuro, tem tb. haver com o que se experencia em uma certa classe social. Quanto mais no "veneno", mais no presente estamos, um presente que não passa, como nos ensina Pelbart, não se sublima, nos ensina Chaim (livro sobre Ferenczi). Então esta galera, vive um presente (falo tb. desde minha experiência com a galera de Cidade de Deus) , um eterno e intenso presente que derrepente acaba. Talvez, antes de serem presos ou antes da morte, no último suspiro, faça-se outra temporalidade que permita um distanciamento entre o que se experimenta e um depois que se antecipa. Mas aí já é outra história.
Mas é de uma história outra que é preciso investir. Em CDD, o lugar de identificação ocupado pelos traficantes para a garotada já não é único (nunca foi, mas vá lá...) . O destino não é mais ser bandido para se obter o poder necessário à sobrevivência (trabalhei antes e depois das UPPs). Com a chegada das UPPs abre-se espaço para identificação com o professor, enfermeiro, ass. social, o cara que treina o time de futebol, que lia com computadores etc etc etc. Que acham?
abços
Alexandre


O QUE MAIS APAVORA NO ESPETÁCULO TODO É A IMENSA, DESCABIDA, INSIDIOSA E IMPLACÁVEL MISÉRIA.
VERGONHOSA MISÉRIA NACIONAL.
OLÍMPICA POBREZA E DESCASO SOCIAL.
Maira Landes

E na Folha de hoje já começam a aparecer notícias dos abusos cometidos pela polícia carioca contra os moradores dos Complexos da Penha e do Alemão. Os direitos dos cidadãos tem que ser respeitados porque, apesar da insistência da mídia, isso não é uma guerra. Invadir as favelas com equipamentos militares não vai acabar com o tráfico de drogas, isso tudo é mais uma encenação para que o mundo acredite que o Brasil tem condições de sediar os próximos eventos internacionais do esporte! Quem 'paga o pato' são sempre as populações de baixa renda. Ou a sociedade brasileira deixa de ser hipócrita e começa a debater a questão da legalização das drogas, ou continuaremos como observadores desses espetáculos de criminalização da pobreza.

Cynthia.

Olá Rogério,

Tudo bem? Muito bom o texto enviado por você. Concordo que essa invasão "cinematográfica", chamada por muitos de "Tropa de Elite 3", não vá resolver os problemas relacionados ao tráfico no Complexo do Alemão, muito menos do Rio de Janeiro.

O que deve-se pregar são políticas públicas para atender a população, dando saúde, educação e oportunidades de emprego. Em vez disso, vemos a política em prol de promoção pessoal que deputados, vereadores, prefeitos e governadores sempre fizeram e continuarão a fazer...

Grande abraço,
Luiz Carlos.


Mas merecemos uma pausa para celebração de, pelo menos, uma ação positiva. Senão...!!!
Virginia Portas

Cyntia disse...

Não acho que culpabilizar o usuário de drogas seja uma boa via.
Cynthia.
Em 30 de novembro de 2010 11:27

Alexandre disse...

Pronunciamento Marcelo Freixo
http://marcelofreixo.com.br/portal/index.php?option=com_content&task=view&id=233&Itemid=44

A crise no Rio e o pastiche midiático
http://luizeduardosoares.blogspot.com/2010/11/crise-no-rio-e-o-pastiche-midiatico.html

Palestra Fiell - parte 1
http://www.youtube.com/watch?v=AeN1WqWQEF8

Palestra Fiell - parte 2
http://www.youtube.com/watch?v=i4kkJ-hlGb0

Alexandre disse...

Date: Mon, 29 Nov 2010 14:44:03 +0000

Pensei em uma contribuição ao texto do Marcelo Freixo que enviei ontem pra vcs. Tem haver com a temporalidade. Freixo supõe um tempo de futuro pra bandidagem, como se eles sofressem por um futuro que não irá se cumprir (no caso ele fala da morte ou da cadeia). Mas acredito que esta concepção de tempo, de um futuro, tem tb. haver com o que se experencia em uma certa classe social. Quanto mais no "veneno", mais no presente estamos, um presente que não passa, como nos ensina Pelbart, não se sublima, nos ensina Chaim (livro sobre Ferenczi). Então esta galera, vive um presente (falo tb. desde minha experiência com a galera de Cidade de Deus) , um eterno e intenso presente que derrepente acaba. Talvez, antes de serem presos ou antes da morte, no último suspiro, faça-se outra temporalidade que permita um distanciamento entre o que se experimenta e um depois que se antecipa. Mas aí já é outra história.
Mas é de uma história outra que é preciso investir. Em CDD, o lugar de identificação ocupado pelos traficantes para a garotada já não é único (nunca foi, mas vá lá...) . O destino não é mais ser bandido para se obter o poder necessário à sobrevivência (trabalhei antes e depois das UPPs). Com a chegada das UPPs abre-se espaço para identificação com o professor, enfermeiro, ass. social, o cara que treina o time de futebol, que lia com computadores etc etc etc. Que acham?
abços
Alexandre

Alexandre disse...

Tb. imagino que dure uns 2 dias se muito. Se a poriça começar a dar geral na galera da Z. Sul. vai dar merda, com certeza. Não sei se as UPPs são iguais as mílicias. Trabalho em área de milícia ("Rio das Rochas") e trabalho em área das UPPs C. de Deus. Quando não tinha UPP a escola ficava a mercê do tráfico e dos policiais corruptos que faziam dentro e fora da escola o que queriam Eu tive a "oportunidade" de trabalhar numa dessas escolas, lá no veneno de CDD. É aquela coisa escrota, e o tráfico acaba sendo a melhor das escolhas, (pelo menos eles me tinham em boa conta). O problema é que faz parte do ato de traficar, ser bandido, ou seja, portar armas (que eram vendidas pelos poriça) ec e tal. E depois de uns tecos o cara entrava na escola e ficava lá fumando um pra se acalmar. Armado, claro. As UPPs dizem são melhores do que a continuidade da bandidagem de azul, ou seja os fdp da poriça. Elas criam uma visibilidade em torno da necessidade de alternativas, assim, se o cara vacilar (claro que rolam os arregos) muito a mídia vai estar de olho. Os moradores tb. pois as mães não gostavam de ver seus filhos morrerem cedo. Então se o governo diz que as UPPs tem o objetivo de quebrar com estes "hábitos" de algum modo ele terá que responder por isto. Daí que durante algum tempo a galera se sente aliviada, pois podem ir e vir sem fazer semblant de bandido. Por outro lado muitas famílias vão ficar nas mãos dos bolsas famílias da vida, uma vez que aquele membro ligado ao tráfico não está mais empregado.
Então pra este treco de UPP dar certo tem que haver uma ação conjunta. Não é só Estado policial, como se vê corretamente nas manchetes, mas algo mais, que tem que chegar junto. Novas ofertas de inclusão etc e tal. Neste caso, forçosamente, claro, o Estado tem que incluir o resto que ele quis que de algum modo existisse como bucha: o lado feio e malvado da sociedade.
Mas esta galera resistiu da maneira como pode criando sua linguagem e seus códigos. Criou seus modos de visibilidade e existência para o outro. O tráfico foi um tipo de trabalho e tb. de visibilidade. Ser do tráfico, ou parecer dava poder. Mas tem o link com a criminalidade. Aí a roda gira e voltamos ao início. Então a chegada das UPPs, permite com que esta galera encontre modos de reinvidicar serem vistos de outro jeito.
Já as milícias... é outra história. Acho que o Estado nem começou a mexer com elas. Ali o bicho pega, pois o cara tá do seu lado e vc. nem sabe....
ps.: Roger tem como mandar pra nossa galera? abração

Maira Landes disse...

Querido Alexandre, Cynthia e demais colegas da FF;

..."Não clama porventura a sabedoria e o entendimento não faz ouvir a sua voz?..." (Provérbios)

Segundo o velho e ainda atualíssimo Freud, culpa é o preço que pagamos, uns mais, outros menos,
dentro de uma instância psíquica, para vivermos em sociedade.
Sendo esta uma sociedade democrática, em termos jurídicos, podemos ser ou não culpados, mas sem dúvida,
somos todos responsáveis.
Dentro da questão: o tráfico de drogas no Rio de Janeiro e sua erradicação total proposta pelo atual governo
do estado, me parece haver não somente "uma via" de entrada , nem "a melhor via" de abordagem possível, dada a
dimensão e profundidade do tema. Caso contrário, acabaremos num beco muito mais estreito e precário do que aquele
lugar, exaustivamente explorado não só pela mídia que, vale lembrar, chama-se "Complexo" do Alemão.
Termino este comentário parafraseando Shakespeare, com a nítida impressão de que,
"há muito mais coisas entre o tráfico de drogas, o objetivo do governo do estado e o Complexo do Alemão, do que
supõe nossa vã filosofia."
Com Freud e Shakespeare diminuo minha culpa, tiro o "pó" e dou "um brilho" no meu narcisismo e aumento
minha responsabilidade social. Não exatamente nesta ordem, nem com a assepsia que almejam nossos ideais ou com
a transcendência que alcança nossa sublimação.

Maira Landes

bjs

Alexandre disse...

Maira, não se se recebeu este artigo do Luiz Eduardo. Tá no Blog dele. Formatei no word e tô enviando em anexo. Sáo 3 folhas e escapa a esta doidêra com que se trata a questão do bagulho e outros tóxicos....
Tá du bom o artigo
bjocas
Alexandre

Cynthia disse...

Caro(a)s colegas,
pagamos o preço da culpa, mas não precisamos concordar e validar os mecanismo criados pela sociedade para incrementar ainda mais esse 'sentimento'! Responsáveis somos todos, já que fazemos parte dessa sociedade, não culpados! Continuo acreditando que a via para resolver o problema do tráfico de drogas é político e, não militar ou repressivo. Sem legalizar o uso e a venda das drogas continuaremos assistindo a esses espetáculos cênicos de criminalização da miséria! Ainda mais com uma polícia corrupta como a do Rio de Janeiro, o tráfico vai sair das mãos dos traficantes para as mãos da polícia... que bela solução! E a população carente é quem vai pagar o pato, como sempre!
Cynthia.