“O vento varria os meses
e varria os teus sorrisos...
o vento varria tudo!
E a minha vida ficava
cada vez mais cheia
de tudo.”
Manuel Bandeira (de Estrela da Manhã, em Antologia Poética, org. Emmanuel de Moraes, José Olympio Editora, Rio, 1986)
Numa tarde outonal de sábado, eu sou carregado em uma maca para o quarto do hospital aonde eu deveria ficar, ainda, por dois dias. Percebia nos rostos dos meus familiares que me esperavam, a apreensão e a dúvida. Até que entrou Telly Savalas e dirigiu-se a eles que ouviam as explicações e recomendações.
Eu ainda estava muito atordoado, mas sabia que Telly Savalas já havia morrido há uns quinze anos e que aquele era o Dr. Ribas, o neurocirurgião que operara, até instantes atrás, a minha espinha, como ele gosta de dizer.
Fiquei pensando o que leva uma pessoa a trazer lembranças de fatos, acontecimentos ou pessoas do passado. Malgrado a parecença de Dr. Ribas com Telly Savalas, não seria apenas isso, uma vez que ambos tiveram caminhos e épocas bem distintos em suas vidas.
Telly Savalas foi um ator de televisão e cinema dos Estados Unidos filho de imigrantes gregos. Antes de ser escalado como Kojak, o ator era conhecido apenas por papéis de bandido, muitos deles rodados na Itália.
Como Kojak, em 1973, Savalas tornou-se internacionalmente conhecido, além de ganhar um Emmy pela atuação na série. Morreu em 1994, aos 70 anos, devido a complicações de um câncer de bexiga. Foi enterrado na ala George Washington do Forest Lawn Memorial Park, em Los Angeles. Em sua lápide, foi colocada uma conhecida citação de Platão: "a hora da partida chegou, e seguimos nossos caminhos: eu para morrer, e você para viver. O que é melhor, só Deus sabe fazer."
Honras feitas ao ator, o que tudo isso tem a ver com o Dr. Ribas?
Parece um tanto estranho que um conjunto de acontecimentos insistam em se fazer presentes num momento tão delicado como o de uma pós cirurgia. Fiquei a pensar nisso até que percebi que o próprio Dr. Ribas já havia me levado ao passado em uma das minhas consultas preliminares.
Ao revelar a sua predileção por poetas e autores brasileiros, o nome de Manoel Bandeira surgiu como um traço de união entre nossas vidas. Ele tem fortemente em sua vida a vibração de Manoel Bandeira e em mim, ficou um apagamento de Bandeira a partir da morte de uma irmã.
Em meados de agosto de 1968, minha irmã foi internada no hospital dos bancários, no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, com metástase de câncer mamário. Eu ia visitá-la quase todos os dias. Ela ficou alojada num quarto individual. Numa dessas visitas, eu resolvi passear pela enfermaria feminina que ficava no mesmo andar. Certo dia conheci Nereida Pichon, uma argentina que falava um ponrtunhol com sotaque gaúcho. Ela aparentava ter uns setenta anos, mas talvez tivesse uns cinco anos menos. Estava em convalescência de uma cirurgia na coluna lombar. Conversava sobre tudo, mas admirava-se com autores brasileiros, principalmente do sul do Brasil. Mário Quintana e Erico Verissimo que eram os seus preferidos, mas entre os poetas, Manoel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade eram recitados diariamente.
Lembro-me de que quando eu a conheci ela falava de dores e sofrimento quando citou a celebre frase de Drummond: “A dor é inevitável e o sofrimento é opcional.”
Recitava: E como farei ginástica / Andarei de bicicleta / Montarei em burro brabo / Subirei no pau-de-sebo / Tomarei banhos de mar! / E quando estiver cansado / Deito na beira do rio / Mando chamar a mãe-d'água / Pra me contar as histórias / Que no tempo de eu menino / Rosa vinha me contar / Vou-me embora pra Pasárgada.
Esses versos eram recitados com pompa e orgulho. Seus olhos marejavam e brilhavam como jabuticaba. Todo seu rosto se iluminava. Eu sentia-me apaixonado por aquela mulher franzina e feia. Em minha juventude sentia-me capturado e fascinado por ela.
Ir ao hospital era para um mim um martírio. Tinha uma irmã definhando pelo câncer generalizado, mas visitar Neréia, como gostava de ser chamada, era sempre uma grande compensação.
Eu estava no primeiro ano do curso de ciências biológicas e aquele foi um ano conturbado, principalmente na França em maio e em agosto aqui no Brasil. Meus autores prediletos eram: Darwim; Karl Von Frisch; Storrer e Ussinger; Oswaldo Frota-Pessoa e Paula-Couto, dentre outros, todos ligados à biologia. Eu não me permitia “perder tempo” com autores da literatura. Os assuntos da política já me tomavam mais do que o tempo necessário, embora eu não fosse nenhum ativista.
No dia 13 de outubro eu fui ao hospital para tratar de um assunto bastante delicado para mim e minha família. O desembaraço para o sepultamento de minha irmã. Pela primeira vez não visitei Neréia.
No dia seguinte, fui ao cemitério São João Batista, para o velório e sepultamento de minha irmã. Somente nessa hora eu soube do falecimento e velório de Manoel Bandeira que se daria no mesmo cemitério, no Mausoléu da Academia Brasileira de Letras.
Passados alguns dias fui visitar Neréia e comunicar-lhe que não voltaria mais lá. Quando ela me viu seu rosto franziu-se e as lagrimas brotaram de seus olhos. Eu abracei-a ternamente e choramos pelos nossos queridos. Eu não tive a coragem de falar-lhe da morte de minha irmã, mas ela intuiu o que acontecera e que seria a minha ultima visita e recitou-me, baixinho, ao pé do ouvido, “O último poema” de Bandeira: Assim eu quereria meu último poema / Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais / Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas / Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume / A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos / A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.
Eu não sei dizer o quanto esses episódios foram marcantes para que eu não me lembrasse de ler Bandeira, mais tarde, quando dei a vez aos autores da literatura brasileira.
A psicanálise se fez muito presente neste último quartel de minha vida, onde passei a procurar explicar muitos sonhos, devaneios, ou aquilo que a razão não explica. Muitas vezes, nem mesmo para mim, encontrava explicações, muito menos para as pessoas que me procuravam.
Ulisses Tavares, em seu livro, “Quando nem Freud explica tente a poesia”, não dedicou a Bandeira nenhuma passagem, porém retira de Academia dos mortais de Bráulio Tavares o seguinte poema: A academia que eu sonho / não tem fardões nem patronos / nem brasões verde-amarelos // tem farra das oito as oito / tem coito em vez de biscoito / e um chazinho de cogumelos!
Dr. Ribas fez brotar, de tão longe, essas lembranças encobertas de minha juventude que, obviamente ressurgiram num dia tão importante para mim. Talvez e até por isso mesmo, que seus conteúdos afetivos acabaram por preencher o meu presente, como se fosse uma inspiração com chazinho de cogumelos.
Eu ainda estava muito atordoado, mas sabia que Telly Savalas já havia morrido há uns quinze anos e que aquele era o Dr. Ribas, o neurocirurgião que operara, até instantes atrás, a minha espinha, como ele gosta de dizer.
Fiquei pensando o que leva uma pessoa a trazer lembranças de fatos, acontecimentos ou pessoas do passado. Malgrado a parecença de Dr. Ribas com Telly Savalas, não seria apenas isso, uma vez que ambos tiveram caminhos e épocas bem distintos em suas vidas.
Telly Savalas foi um ator de televisão e cinema dos Estados Unidos filho de imigrantes gregos. Antes de ser escalado como Kojak, o ator era conhecido apenas por papéis de bandido, muitos deles rodados na Itália.
Como Kojak, em 1973, Savalas tornou-se internacionalmente conhecido, além de ganhar um Emmy pela atuação na série. Morreu em 1994, aos 70 anos, devido a complicações de um câncer de bexiga. Foi enterrado na ala George Washington do Forest Lawn Memorial Park, em Los Angeles. Em sua lápide, foi colocada uma conhecida citação de Platão: "a hora da partida chegou, e seguimos nossos caminhos: eu para morrer, e você para viver. O que é melhor, só Deus sabe fazer."
Honras feitas ao ator, o que tudo isso tem a ver com o Dr. Ribas?
Parece um tanto estranho que um conjunto de acontecimentos insistam em se fazer presentes num momento tão delicado como o de uma pós cirurgia. Fiquei a pensar nisso até que percebi que o próprio Dr. Ribas já havia me levado ao passado em uma das minhas consultas preliminares.
Ao revelar a sua predileção por poetas e autores brasileiros, o nome de Manoel Bandeira surgiu como um traço de união entre nossas vidas. Ele tem fortemente em sua vida a vibração de Manoel Bandeira e em mim, ficou um apagamento de Bandeira a partir da morte de uma irmã.
Em meados de agosto de 1968, minha irmã foi internada no hospital dos bancários, no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, com metástase de câncer mamário. Eu ia visitá-la quase todos os dias. Ela ficou alojada num quarto individual. Numa dessas visitas, eu resolvi passear pela enfermaria feminina que ficava no mesmo andar. Certo dia conheci Nereida Pichon, uma argentina que falava um ponrtunhol com sotaque gaúcho. Ela aparentava ter uns setenta anos, mas talvez tivesse uns cinco anos menos. Estava em convalescência de uma cirurgia na coluna lombar. Conversava sobre tudo, mas admirava-se com autores brasileiros, principalmente do sul do Brasil. Mário Quintana e Erico Verissimo que eram os seus preferidos, mas entre os poetas, Manoel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade eram recitados diariamente.
Lembro-me de que quando eu a conheci ela falava de dores e sofrimento quando citou a celebre frase de Drummond: “A dor é inevitável e o sofrimento é opcional.”
Recitava: E como farei ginástica / Andarei de bicicleta / Montarei em burro brabo / Subirei no pau-de-sebo / Tomarei banhos de mar! / E quando estiver cansado / Deito na beira do rio / Mando chamar a mãe-d'água / Pra me contar as histórias / Que no tempo de eu menino / Rosa vinha me contar / Vou-me embora pra Pasárgada.
Esses versos eram recitados com pompa e orgulho. Seus olhos marejavam e brilhavam como jabuticaba. Todo seu rosto se iluminava. Eu sentia-me apaixonado por aquela mulher franzina e feia. Em minha juventude sentia-me capturado e fascinado por ela.
Ir ao hospital era para um mim um martírio. Tinha uma irmã definhando pelo câncer generalizado, mas visitar Neréia, como gostava de ser chamada, era sempre uma grande compensação.
Eu estava no primeiro ano do curso de ciências biológicas e aquele foi um ano conturbado, principalmente na França em maio e em agosto aqui no Brasil. Meus autores prediletos eram: Darwim; Karl Von Frisch; Storrer e Ussinger; Oswaldo Frota-Pessoa e Paula-Couto, dentre outros, todos ligados à biologia. Eu não me permitia “perder tempo” com autores da literatura. Os assuntos da política já me tomavam mais do que o tempo necessário, embora eu não fosse nenhum ativista.
No dia 13 de outubro eu fui ao hospital para tratar de um assunto bastante delicado para mim e minha família. O desembaraço para o sepultamento de minha irmã. Pela primeira vez não visitei Neréia.
No dia seguinte, fui ao cemitério São João Batista, para o velório e sepultamento de minha irmã. Somente nessa hora eu soube do falecimento e velório de Manoel Bandeira que se daria no mesmo cemitério, no Mausoléu da Academia Brasileira de Letras.
Passados alguns dias fui visitar Neréia e comunicar-lhe que não voltaria mais lá. Quando ela me viu seu rosto franziu-se e as lagrimas brotaram de seus olhos. Eu abracei-a ternamente e choramos pelos nossos queridos. Eu não tive a coragem de falar-lhe da morte de minha irmã, mas ela intuiu o que acontecera e que seria a minha ultima visita e recitou-me, baixinho, ao pé do ouvido, “O último poema” de Bandeira: Assim eu quereria meu último poema / Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais / Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas / Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume / A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos / A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.
Eu não sei dizer o quanto esses episódios foram marcantes para que eu não me lembrasse de ler Bandeira, mais tarde, quando dei a vez aos autores da literatura brasileira.
A psicanálise se fez muito presente neste último quartel de minha vida, onde passei a procurar explicar muitos sonhos, devaneios, ou aquilo que a razão não explica. Muitas vezes, nem mesmo para mim, encontrava explicações, muito menos para as pessoas que me procuravam.
Ulisses Tavares, em seu livro, “Quando nem Freud explica tente a poesia”, não dedicou a Bandeira nenhuma passagem, porém retira de Academia dos mortais de Bráulio Tavares o seguinte poema: A academia que eu sonho / não tem fardões nem patronos / nem brasões verde-amarelos // tem farra das oito as oito / tem coito em vez de biscoito / e um chazinho de cogumelos!
Dr. Ribas fez brotar, de tão longe, essas lembranças encobertas de minha juventude que, obviamente ressurgiram num dia tão importante para mim. Talvez e até por isso mesmo, que seus conteúdos afetivos acabaram por preencher o meu presente, como se fosse uma inspiração com chazinho de cogumelos.
3 comentários:
fico feliz que tenha voltado a escrever no blog
Rogério
Há algum tempo que eu te acompanho no blog e vejo o cuidado que você tem em apresentar os assuntos.
A ideia que eu faço é que você quer ser sempre verdadeiro e fiel nas suas apresentações, mas desta vez você foi alem. Você faz, de forma magnifica, uma homenagem ao seu médico que o episódio familiar ficou, de certa forma, minimizado. Porém sem perder a importância.
Parabéns pela apresentação e exposição. Amei.
Fabiana
Desculpe, achei o seu blog por acaso.Gostei muito, mas o meu interesse, é encontrar o Dr Antonio Ribas , e não consigo encontra-lo. Como posso saber o seu consultório?
Obrigada
Alana Villar
Meu email:alanamorgana1@yahoo.com.br
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