29 setembro 2008

REFLETINDO SOBRE A FRAGILIDADE HUMANA

Por Rogério Silva

Quando cheguei ao bar encontrei Alfredo sozinho, sentado à mesa do canto oposto ao que sempre costumava sentar. Somente as pontas de cigarro amassadas no cinzeiro, o maço quase vazio, a caixa de fósforos meio arrebentada e o copo de pinga pela metade lhe faziam companhia naquela noite chuvosa.

Eu sabia que o copo pela metade já anunciava os muitos outros que ele tinha o hábito de tomar de uma talagada só. Quase vazio era apenas o sinal de que oito ou nove haviam sido virados antes. O olhar para o nada já contava parte da amargura que sentia.

Hesitei perturbá-lo, invadir o seu torpor seria uma descortesia para com quem muitas vezes dividi as horas em alegres gargalhadas. Mas deixá-lo só, daquele jeito, também seria uma grande maldade. Parecia precisar de um ombro amigo. Coisa que ele sempre fez quando encontrava alguém abatido.

Olhava-o com candura. Quando automaticamente ele levantou os olhos direto em minha direção. O sorriso sempre presente, nessa hora não apareceu. Em seus olhos um brilho úmido se fez notar. Parecia-me que o ouviria comentar, como Voltaire leva o ingênuo protagonista Cândido a debater consigo mesmo o preceito de que estamos no "melhor dos mundos possíveis". Ele sempre repetia esse mote.

Certamente nessa hora ele não faria isso, pois não era para ele o melhor dos mundos possíveis, pensei. Pelo menos, não naquele momento.

Aproximei-me e ele apenas fez um sinal com a cabeça para que me sentasse. As lágrimas escorriam encharcando a sua blusa num tom azul escuro. Segurei sua mão trêmula úmida e fria com as minhas duas mãos e não lhe dirigi nenhuma palavra. Queria que com o meu calor sentisse a presença do amigo de tantas goladas e farpas humorísticas.

Pediu mais um copo e a cada pequeno gole começou o seu rosário.

- Lembra da Gisely? Começou a falar com a voz embargada.

- A do curso de segurança do trabalho que você dava. Faz muito tempo que não ouço você falar dela. Ela era casada e vocês tiveram um caso, não foi isso?

- É isso mesmo. Foi mais que um caso, meu amigo! Foi mais que um caso! O marido dela era major do exercito e foi transferido para o Acre. Ficaram lá por uns dez anos e voltaram no ano passado.

- Sim, lembro-me bem dela, mas o que houve com ela? Aconteceu alguma coisa grave?

- Por mero acaso eu a vi. Eu mal acabei de entrar na Saraiva encontrei-a folheando um livro. Está um pouco mais velha e com alguns quilinhos a mais. Mesmo quase de costas eu pude perceber o seu jeito maroto de olhar as coisas do mundo. Me aproximei sorrateiramente por trás e tapei-lhe os olhos sob os óculos. Ela falou o meu nome na mesma hora, virou-se e nos beijamos apaixonadamente como se tivéssemos marcado aquele encontro. Dali fomos para a cafeteria da livraria e falamos de nós, sobre esse tempo em que estivemos afastados. Falamos dos acontecimentos, dos filhos, dos projetos pessoais e dos desejos. Contei-lhe o acidente que me deixou impotente e a minha mulher hemiplégica e ela me contou que separara do marido recentemente. Há quatro meses.

- Puxa vida! Aquele acidente foi um verdadeiro desastre! Do carro não sobrou nada, mas vocês ficaram bem machucados. Eu não sabia que você tinha ficado impotente. Mariana eu sei, ficou completamente dependente. Não pode mais trabalhar e até pra comer você tem dar comida na boca. Complementei.

- Pois é! Gisely disse que pensou muito em mim durante todos esses anos. Jorge é um bom militar até no casamento. Cumpre direitinho seu dever, mas não é um bom companheiro quando se trata de afeto. Hoje é coronel reformado. Não lhe dá muita atenção, não conversa e nem lhe proporciona mais sexo. Já se sente muito velho para isso. E olha que só tem sessenta e dois anos! Falava demonstrando um grande pesar. - Ela na flor da idade com quase cinqüenta e ele broxa de afeto e de tudo. Você precisava até ver o tesão que ela ainda é. E sozinha. Coitada! Estão separados, mas ele quer voltar a todo custo. E ainda tem os filhos que volta e meia pressionam. Um já é adulto, tem vida própria, mas a menina ainda é adolescente e depende de cuidado da mãe nessa hora.

- Sim, mas não é isso que está te deixando tão mal! Ponderei.

- Você tem razão, não é isso não. A questão é que ela se sente pouco atraente. Passou a freqüentar as salas de bate papo da internet e tem se frustrado constantemente com companhias que se apresentam falsamente. Afora isso as nossas relações se estreitaram e nossos sentimentos ressurgiram de uma forma tão intensa que e já nem sei o que fazer. Meus sentimentos estão totalmente revirados.

- Como assim? Ela quer casar com você? Perguntei com espanto.

- Aí é que está o problema. Nós nos amamos de verdade. Eu sinto isso. Mas eu não estou disponível. Tem a Mariana com quem a minha relação não é apenas de compaixão. Ainda existe muito afeto. Já não é como antes, é verdade, mas nos amamos. Gisely parece compreender isso e até aceitar. Contudo, na prática, me quer nos momentos mais inoportunos. Imagina se eu posso dizer pra Mariana: “meu bem, eu vou ali comprar cigarros" e voltar dez horas mais tarde como se nada houvesse acontecido!

- Entendo! Você é um cara muito sensível e muito humano também! Ponderei.

- Ela ficou tão chateada comigo que, em represália, eu acho, aceitou sair com um dos caras que ela conheceu na internet. Ele contou uma historinha que ela resolveu conferir e foi pro motel com ele. Estrepou-se e acabou chateada consigo mesma. E eu fiquei muito magoado com ela. Você sabe que eu não sou moralista. Não foi o fato de ela transar com alguém. Estou numa situação que não posso lhe dar o sexo que sempre tivemos no passado. O amor que lhe dispenso é limitado embora seja sincero e verdadeiro. Mas sair com o primeiro que aparece...? Concluiu com os olhos empapuçados.

Nesse momento eu pude compreender melhor como um sentimento verdadeiro machuca as pessoas. Ele a amava de verdade. Ela também o amava. No passado foram amantes incondicionais. Sem cobranças e sem promessas. Simplesmente se amaram. Por isso mesmo se separam sem despedidas. E de repente se reencontram em situações completamente diversas. Ela, livre leve e solta querendo amar que é o que ela sabe fazer e faz bem. Ele encontra nela a companhia que tanto lhe deu felicidade no passado, mas agora não se sente em condições de acompanhá-la. Preso por amor e por compaixão. Despedaçado na sua condição masculina e com a cabeça mais lúcida do que nunca. Vive um grande pesadelo.

Ver Alfredo naquele estado me fez refletir sobre a fragilidade humana. Somos tudo e nada ao mesmo tempo. Essa ambivalência me balança toda a vez que encontro alguém numa encruzilhada como essa. A minha ajuda ao Alfredo, nesse momento, se resume a ouvi-lo e acompanhá-lo, pois não me surge nenhum apanágio, intelectual ou filosófico, que possa servir de alento às suas questões. Fiquei ali um bom par de tempos a escutá-lo.

O desejo de ajudar o amigo pode levar o terapeuta mais experiente a acreditar que seria possível emprestar a sua escuta ao menor conflito que possa aparecer e fazer dessa escuta um trabalho terapêutico, mesmo quando não somos procurados para isso. Respeitar a individualidade é uma regra tão fundamental quanto à da escuta. Por isso propus que nos encontrássemos em meu consultório, pelo menos uma vez, para que eu pudesse indicar-lhe um colega para análise se assim ele desejasse. Ele prometeu ir.

3 comentários:

Luis Fernando Scozzafave de Souza Pinto disse...

OTIMO TEXTO E BELA SITUAÇÃO ROGERIO!!
UM ABRAÇO

Rodrigo disse...

O texto me lembra algums passagens do mal estar na cibilização onde Freud fala da angústia de sermos cientes de nossa finitude.

A situação do teu amigo também me comove, não através de lágrimas, mas de reflexão. Talvez seja empatia, talvez não.

Mas me fez lembrar de quando perdi parte de minha audição, naquele momento me dei conta de que viveria coisas irreparáveis, porém mal sabia eu que as vivências psíquicas me marcariam de forma muito mais significativa do que os pequenos danos físicos.

Um abraço, e parabéns pelo texto.

Rodrigo.

Rogério Silva disse...

Luiz Fernando
Não sei se podemos chamar de bela uma situação que gera tanto sofrimento e dor. Contudo acredito que a psicanálise pode ajudar quando é solicitada para esse fim.

Rodrigo
sem dúvida as vivências psíquicas marcam signifivamente quando estamos diante do imponderável.

Obrigado pelos comentários
Rogério