23 março 2007

FRAGMENTO

... Não sei nem como cheguei até aqui. Estou tonta. Tonta porque estou tomando uns remédios... Vou tentar falar, nem sei como eu começo. É o seguinte, em maio eu dei um flagrante no meu marido, vi que ele tinha outra mulher. Eu estou casada com ele há vinte e tantos anos e já desconfiava, mas nunca me importei muito com isso. Mas quando eu dei esse flagrante, comecei a me sentir muito mal, vi que não dava prá confiar nele. Eu já tinha desconfiado dele em outras situações, mas ia levando porque ele nunca deixava de me procurar. Eu nunca gostei de sexo, com ele não, e nem com ninguém. Mas ele parou de me procurar há uns seis meses. Aí eu pensei que aí tinha coisa, fui atrás e consegui descobrir. Li as notas do cartão de crédito, depois apertei e ele acabou confessando. Aí meu mundo caiu. Porque enquanto desconfiava, mas fingia que não sabia, eu levava a minha vida numa boa, tudo bem. A minha vida sempre foi em função dos outros. É verdade que quando meu filho nasceu eu tive um problema... Quando meu filho nasceu eu quis matar ele. Eu superei isso com muito carinho, mas era um pensamento que não saia da minha cabeça. Mas aí eu redobrava os cuidados e fui superando. Não falei disso prá ninguém. Ninguém sabia disso, só a minha médica e agora você. Estou zonza... É que eu tenho um amigo de família que é psiquiatra e então ele me medicou, me deu dois ou três remédios. Quando eu dei o flagrante e falei que ia me separar, eu passei mal e tive que ser hospitalizada, minha pressão foi a vinte. Aí ele ficou todo preocupado, me pediu perdão e a gente acabou não se separando. Eu não estou agüentando mais, não estou agüentando viver, estou achando muito pesado, muito difícil... A minha vida toda foi assim, não sei se vale mais a pena, por isso eu vim aqui. Eu acabei de cuidar, durante cinco anos, de uma irmã que tinha câncer de mama, ela veio morar na minha casa. Ela acabou morrendo, e aí você sabe o que aconteceu comigo? Apareceu um caroço no meu seio. Eu fui pro hospital, fiz alguns exames e na hora de me operar eu assinei um papel. Quando eu acordei o médico disse que tinha me tirado um seio. Engraçado que isso não me abalou muito não. Eu recebi essa notícia com certa tranqüilidade, não me afetou. E você sabe que depois ele descobriu que eu não tinha câncer. Não tinha. Estou tão cansada, “não sei se tenho vontade de continuar”.

Eu não tenho mais confiança no meu marido, mas agora descobri que estou apaixonada por ele. Não sei se apaixonada é a palavra, estou obcecada por ele. Aí depois de tudo, ele diz que me ama me pede perdão, mas eu não tenho mais confiança nele. E depois, sabe, eu passei a minha vida toda servindo aos outros. Eu moro com um monte de gente, mas eu me sinto super sozinha, eu sinto a maior solidão. Eu moro com meu marido, com esse filho que quando nasceu deu aquele problema, com o filho de criação que meu marido fez eu pegar prá criar, com a minha mãe e com uma tia, que meu marido também trouxe prá casa. Só que ele traz prá casa e quem toma conta sou eu. Ele vai lá prá farmácia, o que acontece lá na farmácia eu não sei porque ele não me deixa chegar perto. Eu já pedi prá trabalhar com ele na farmácia mas ele não deixa. Essa mulher que ele teve acho que era do hospital. Eu pedi prá ele não trabalhar mais no hospital. Ele ganha pouco lá, só que ele diz que dá prestígio. Ele tirou um mês de licença depois que eu tive essa crise, mas semana que vem ele volta para o hospital e aí eu não sei como vai ser. E aí, como é que vai ser? Não sei bem se isso aqui vai me ajudar, mas eu vim...

Sabe, eu acho as vezes que não vai ter jeito não, ele é um irresponsável, a gente poderia estar vivendo muito bem, mas estamos devendo um absurdo, a gente vive contando dinheiro. O irmão dele que é sócio da farmácia vive muito bem, acabou de construir uma casa. Então eu agora estou controlando todas as despesas. Outro dia nós fomos à casa do pai dele, ele foi à farmácia e voltou cheio de remédios para dar lá no hospital, tinha uma lista, tudo para as mulheres, de graça. Aí eu fiquei uma fera, porque nós não somos ricos e ele não é Papai Noel. Agora, o que é que essas mulheres estão dando de troco prá ele? Aí saiu a maior briga, porque eu comecei a perguntar o que as mulheres estão dando prá ele. Eu disse que não confio mais nele, mas depois nós fizemos as pazes.

Ah, se eu me separar dele, não tem problema, eu vou até ser empregada doméstica, eu saio de casa, deixo ele lá, com todo mundo, podem tomar conta de tudo - a conversa agora mudou - já combinei com ele, se a gente se separar, ele é que vai sair de casa, e eu vou querer uma pensão, e não é pouquinha não, viu, eu vou querer seis mil reais!...

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