Por Rogério Silva
Walter Benjamin parece estar falando sempre de dois tempos. Um tempo perdido de criação e um tempo posterior de recriação. O primeiro tempo é o tempo da experiência. Ele fala dessa experiência como uma máscara, a máscara do adulto que é inexpressiva, impenetrável, sempre igual, mas uma ilusão. Questiona a vida absurda e inconsolável para o filisteu que só conhece a experiência e nada além dela, é privado, portanto de consolo e de espírito.
Em “Velhos brinquedos” (Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação; Summus Editorial) ele apresenta o Märkische Museum (Museu distrital de Brademburgo), onde se encontram peças construídas desde o século XVIII, mas focaliza principalmente os brinquedos. São produções individuais, bonecas em tamanho natural, trenzinhos elétricos quilométricos, cavalos de madeira dentre outros.
Para ele, hoje os brinquedos antigos tornaram-se significativos para o folclore, para a psicanálise, para a história da arte e para outras manifestações da atualidade.
Neste texto, o que mais lhe chamou a atenção foi o material apresentado por Wilke, um professor surdo-mudo que elaborou junto com crianças, também surdo-mudas. A drasticidade apresentada é tão angustiante, que uma pessoa normal poderia perder a voz e a audição por algumas horas de tão aterrorizadas.
A criança, num mundo de gigantes cria para si, brincando o próprio mundo e o adulto diante de uma realidade ameaçadora, tenta libertar-se dos horrores do mundo através de miniaturas. “A banalização de uma existência insuportável contribuiu consideravelmente para o crescente interesse que jogos e brinquedos infantis passaram a despertar após o final da guerra”.
Esse tempo de criação parece ser um tempo primitivo, o tempo do narrador, do artesanato. É a passagem do artesanato para a produção em série, que muda a forma da narrativa e faz surgir o romance.
O romance sai da experiência individual (Erlebnis), não compartilhada, para a coletiva (Erfahrung), onde o leitor persegue o mesmo sentido dado pelo autor. É o que acontece nas novelas da TV, por exemplo.
Para Benjamin a experiência se perde na modernidade pelo excesso da reprodutividade, fazendo surgir figuras alegóricas.
Na Wikipédia uma alegoria (do grego αλλος, allos, "outro", e αγορευειν, agoreuein, "falar em público") é uma representação figurativa que transmite um significado diferente do literal. É geralmente tratada como uma figura da retórica, mas uma alegoria não precisa ser expressa na linguagem: pode se dirigir aos olhos, e com freqüência se encontra na pintura, escultura ou outra forma de arte mimética.
Assim surge em Benjamim a necessidade de compreender um procedimento estético de sua época quando escreve As Passagens.Tal como uma obra arquitetônica, "refletindo" (no pensamento) a estrutura arquitetônica da cidade de Paris e das galerias francesas do século XIX, ela é construída a partir de um método a que Benjamin chama o método da montagem, Passagens pretende-se como uma análise dos elementos fundamentais que constituem a essência da modernidade, privilegiando-se, sobretudo, o caso paradigmático (até mesmo para a compreensão da alegoria) de Baudelaire e da sua lírica, tomando fundamentalmente a sua obra As Flores do Mal.
A cidade como elemento matricial da poesia lírica, apresenta o flâneur e a flânerie.
Seria impossível abordar a obra de Baudelaire, e Walter Benjamin compreende isso, sem analisar os conceitos de flâneur e de flânerie. É através do olhar do flâneur que a cidade de Paris é transfigurada poeticamente por Baudelaire.
Num belo trabalho, Jean Luiz Neves Abreu propõe uma literatura brasileira na perspectiva benjaminiana para dizer que se a cidade é a paisagem do flâneur, a rua é sua moradia. É ela que “conduz o flanador a um tempo desaparecido”. Como uma figura alegórica, não se alimenta apenas daquilo que lhe atinge o olhar, “com freqüência também se apossa do simples saber, ou seja, de dados mortos”. Estas considerações extraídas da análise que Benjamin faz da flânerie, aplicam-se à Memórias da rua do Ouvidor de Joaquim Manoel de Macedo, onde o autor é conduzido ao passado pelas memórias das ruas. Embora ligado ao romance folhetinesco e sua intenção seja de falar do ambiente e dos costumes da corte no Brasil, Macedo deve ser considerado como um cronista da cidade; crônica alimentada da ficção e da história.
João do Rio (Paulo Barreto) com os olhos do flâneur fixará tanto o espetáculo da modernização quanto o que a cidade procurava esconder. No início do século XX, flanando (de flâneur) pela cidade, o autor mostrava as transformações pelas quais a cidade passava e os signos da modernidade: “E subitamente, é a era do automóvel. O monstro transformador irrompeu, bufando, por entre os escombros da cidade velha”. Mas ao percorrer os diferentes espaços da cidade mostrava também o que a cidade destruía. O Rio das vitrines e dos automóveis era também o dos marginais, dos boêmios, dos fumadores de ópio e dos miseráveis. João do rio revela assim em suas crônicas o outro lado do cartão-postal. Em Pequenas profissões, surgem na cena da modernidade “pobres seres tristes [que] vivem do cisco, do que cai nas sarjetas, dos ratos, dos magros gatos dos telhados, [...] os que apanham o inútil para viver”.
Rubem Fonseca sem objetivo de tornar seu livro um guia exótico para estrangeiros e assumindo a figura do trapeiro, o que o flâneur registra são as formas como vivem as prostitutas, os grafiteiros, os camelôs e os desabrigados. Quando coloca em cena o que a cidade exclui, Rubem Fonseca se aproxima da tradição da crônica de João do Rio.
O tipo do flâneur também cumpre o papel, na medida que sua ociosidade é um protesto contra a divisão do trabalho. Em João do Rio podemos dizer que é essa flânerie que cumpre o papel heróico na medida em que encena uma negação ao mercado:
Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar. Ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é perambular com inteligência. O inútil é artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente mil coisas necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente adiadas.
Jean Luiz conclui que os autores apresentados viveram tanto o processo de modernização das cidades, quanto suas obras tiveram que se adequar aos novos ritmos e necessidades da produção literária. Daí situar o olhar flâneur dos autores produzindo reflexões que colocaram a cidade e a modernidade em cena. A própria literatura se torna narrativa protestando contra o esquecimento da cidade e revelando as contradições que se produziram pelo processo modernizador.
7 comentários:
Oi Tio, parabéns, seu blog tá bem legal. Bons textos. Deixo meu abraço.
Dani
Oi Dani
Obrigado pela participação. Os comentarios são sempre bem vindos e afinal o Blog vive disso mesmo. Textos e comentários
abs rogerio
Talvez um dos maiores "flaneurs" tenha sido Henry Cartier Bresson, com sua máquina fotográfica...
Postei, igualmente, um comentário diverso no "Roda de Ciência", para o qual peço sua atenção.
Bacana este blog. Parei aqui depois de uma surfada no google sobre Benjamin e as cidades, e gostei do conteúdo, das abordagens.
grande abraço
quando li seu texto (muito bom, por sinal) lembrei logo do homem na multidão, de Poe...
parabéns pelo blog e pelo belo texto. me foi útil e agradável.
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